Fronteira entre a vida e a morte

É absolutamente esgotante vivenciar tamanho somatório de tragédias sem se contaminar por tanta tristeza

Para quem é estranho ao dia a dia dos serviços de saúde, muitas são as situações envoltas de certo misticismo, quase ritualísticas, as quais figuram como absolutamente rotineiras aos médicos, enfermeiros e técnicos.

Não se trata, entretanto, de mecanização desumana dos processos de trabalho, mas sim de necessária dessensibilização de certos estímulos, não a fim de sequestrar o valor e a dignidade da pessoa humana, mas sim em favor de viabilizar a correta execução de alguns procedimentos terapêuticos.

Soa-me, como médico, impalatável intubar as vias aéreas de um paciente, realizar a drenagem de um tórax, introduzir acessos venosos centrais, reanimar paradas cardiorrespiratórias e toda sorte de procedimento invasivo debruçado exclusivamente na angústia sentida pelos familiares que aguardam na antessala do pronto socorro.

Enfatizo: sem o apreço empático pela vida humana, a medicina se esvazia de propósito. O eixo do ofício médico rotaciona em torno da valorização da vida humana e, se por um lado se faz necessário se desarmar de preconceitos, igualmente se faz imprescindível abandonar receios e fragilidades.

Há que se encontrar, portanto, tênue equilíbrio entre o distanciamento prático e a proximidade empática. O distanciamento afetivo em si, enquanto necessário à correta execução da técnica clínica e cirúrgica, sem renunciar do valor humano que envolve o ofício médico, é rotineiramente posto à prova no contexto da pandemia.

É absolutamente esgotante vivenciar tamanho somatório de tragédias sem se contaminar por tanta tristeza. A angustia que nos cerca, nos sufoca, nos amarra, nos derruba e contamina cada dia mais e mais, ficando toda vez mais difícil de levantar.

“Todo médico carrega consigo um pequeno cemitério, aonde vai de tempos em tempos para rezar, um lugar de amargura e arrependimento, onde procura pela explicação de suas perdas.” A frase é de René Leriche, da metade do século XX, sendo absolutamente precisa na descrição do sofrimento do ofício médico.

Para mim, um procedimento sumariza de forma duramente poética a fronteira da incerteza entre a vida e a morte: a intubação orotraqueal em regime de urgência e emergência. Trata-se de procedimento seguro, com raríssimas complicações quando bem executado e efetivamente capaz de salvar múltiplas vidas, entretanto que gera receio aos pacientes. Esvazio, portanto, de qualquer sensacionalismo antiético minha reflexão: trata-se de procedimento médico e, quando bem indicado, necessário, eficaz e correto.

A intubação, realizada mediante sedação de hipnóticos, bloqueadores e analgésicos, não proporciona desconforto, induzindo o paciente ao sono profundo, com uma notória peculiaridade: os diálogos travados entre os pacientes e a equipe médica instantes antes da sedação.

“Eu confio em você, mas faz com carinho e com amor, por favor, tá bom?” – com os olhos marejados e repletos de afeto.

“Eu tenho três filhos para criar, não posso morrer, não me deixa morrer” – com a aflição do coração apertado de uma mãe em desespero.

“Você tem certeza que eu preciso ser intubado, consigo até dançar lambada!” – com a voz intercortada de falta de ar em franca insuficiência respiratória aguda grave.

“Avisa minha filha que eu a amo e pede desculpas para minha mãe por mim, tá bem? Fala que eu também a amo” – com um misto de amor e perdão.

Há que se estudar, meus caros, os efeitos devastadores no psicológico dos profissionais de saúde que conviver diariamente nesse contexto proporciona. Trata-se de verdadeiro campo minado, pendendo ora para inaceitável distanciamento – que feriria a indispensável empatia –, ora para angustiante somatização – que inviabilizaria a continuidade do trabalho médico.

A fronteira da incerteza entre a vida e a morte aflora em nós alguns dos mais profundos instintos e identifica com solar clareza os verdadeiros valores dos indivíduos. É simultaneamente um privilégio poder vivenciar e compartilhar estes momentos, auxiliando com a adequada prática médica, quanto também uma verdadeira missão se manter de pé após manejar dezenas – as vezes centenas – de pacientes graves diariamente.

A pandemia deixará marcas profundas na sociedade. Em que pese discordar ativa e publicamente do atual governo federal, digo da forma mais politicamente neutra possível que torço – com as mãos de quem segurou incontáveis pacientes em seus últimos suspiros – que o responsável pela omissão de cuidados entre nas páginas da história pelo maníaco, genocida e incompetente que se provou ser.


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