Uma carta para o lado de lá

Aqui, a história não ficou para trás e estamos sentenciados a construí-la até o fim. Nós, vivos, estamos condenados a viver

In memoriam Teresa Urban

Teresas, Marias e Joões, me desculpem incomodar o sono celestial, mas estou com uma dúvida que me parece crucial para o futuro do lado de cá. Estamos adoecendo massivamente. Centenas de milhares de pessoas doentes. Não é uma doença nova, mas nós na nossa arrogância besta cometemos o erro suicida de achar que já estávamos imunes. Agora, encurralados dentro de nossas casas, tremendo de medo e dormindo com os olhos abertos, estamos em meio ao apocalipse mais solitário que as divindades vizinhas de vocês poderiam tramar. Nossa socialização aqui na Terra hoje confina-se ao ponto comum a todos os mortais e que fica ligeiramente do lado esquerdo do peito, o epicentro do medo da morte. 

Eu bem que gostaria de estar escrevendo para contar que não há mais flores ao chão, que somos bem mais de 100 mil e que, finalmente, superamos a dita cuja para todo o sempre. Mas isso seria se eu com vocês estivesse. Aqui, a história não ficou para trás e estamos sentenciados a construí-la até o fim. Nós, vivos, estamos condenados a viver. E vocês, a nos assistir. É, talvez o sono celestial de vocês esteja mais para insônia celestial. 

O diagnóstico é grave, a liberdade nos escapa. Eu mesma já estou começando a sentir os sintomas e tenho medo de ir pro beleléu. Talvez eu esteja ficando paranóica, mas talvez esteja de fato doente ou, mais provavelmente, os dois. Tem dias em que eu vivo. E tem dia que eu juro que é o último. Preciso de um sinal, aulas de anatomia básica não me foram suficientes para detectar: quando é que acaba a liberdade?

Tenho sinais corporais claros de perda de liberdade. Estou com uma insistente visão dupla, uma espécie de turbidez em que parece que tudo está divido em dois pólos opostos. Não dá para enxergar com clareza, não sei se o que vejo é a realidade ou se é o que me foi permitido ver. 

Tenho sido acometida por febres tão intensas que me causam delírios. Suando frio eu voltei a ficar confinada num tempo em que nunca vivi, em que o poder do povo foi usado contra ele. Em que a democracia pedia prisão. E a porta de entrada da prisão era decorada com bandeirinhas bem branquinhas, mas que balançavam agitadas à revelia do vento que uivava silêncio, sedutoramente discursando em bom tom para os surdos. E a prisão, censurando os pulmões por respirarem, fazia com que todos pedissem por uma asfixia parecida com a dita dura realidade da época de vocês. Eu sei que isso é absurdo o bastante para caracterizar um delírio febril, mas quando meço, minha temperatura está normal.  

Minha cabeça dói. Está cheia de palavras, parece que vai explodir de tantas palavras. É que estou ficando rouca, esforço-me desproporcionalmente a falar numa voz tão baixinha que já nem sei se foi silenciada ou se misturou-se à confusa situação para além dos limites da minha pele. Não fiz exame, mas sinto meus níveis de liberdade baixarem quando a palavra é dita a duras penas.

Ouvi dizer que a principal causa da morte dessa doença é não conseguir respirar. Sinto um aperto no peito, mas no entanto eu luto. Quanto mais o ar me falta, mais eu sinto uma necessidade inadiável de inundar cada célula dentro de mim com doses cavalares de oxigênio. E que este oxigênio circule em cada uma das minhas veias, que faça do meu sangue vermelho brasa cada vez mais brasileiro e que meu coração bata tão fortemente contra meu peito que não haverá como mantê-lo confinado ao meu próprio corpo.

Talvez ser livre seja sonhar em sê-lo. Talvez um dia essa dúvida me mate. Mas uma coisa eu prometo, do lado de cá, nós respiraremos a plenos pulmões para que vocês para sempre vivam. Aqui, a maldita não dura!

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