Princípio acusatório, juízes inquisidores e a Vaza Jato

A divulgação de supostos novos trechos de conversas entre os membros do Ministério Público da força tarefa da operação Lava Jato e o ex-juiz da 13.ª Vara Federal Sérgio Moro, reacendeu o debate acerca da legalidade da comunicação entre órgão […]

A divulgação de supostos novos trechos de conversas entre os membros do Ministério Público da força tarefa da operação Lava Jato e o ex-juiz da 13.ª Vara Federal Sérgio Moro, reacendeu o debate acerca da legalidade da comunicação entre órgão acusador e julgador acerca dos casos de competência destes. Nas mensagens que apareceram na mídia, o ex-ministro teria instruído os procuradores a produzirem perícias e provas as quais seriam posteriormente apreciadas por ele para proferir o édito condenatório do ex-presidente Lula.

Independentemente da autenticidade das mensagens, é certo que casos assim acontecem aos montes Brasil afora, principalmente porque a própria estrutura judiciária faz com que promotores e juízes trabalhem diariamente lado a lado, e não raras vezes os polos processuais são literalmente vizinhos de gabinete, pois Judiciário e Ministério Público compartilham a estrutura física do fórum entre si.

No entanto, a partir da ótica de garantias processuais, necessário se faz esclarecer, principalmente para o público leigo, que um magistrado instruir extraprocessualmente os promotores de justiça acerca de processos que sejam de sua competência de julgamento fere uma série de disposições constitucionais e legais, principalmente de matriz principiológica.

O Constituinte de 1988, ao elevar o princípio do devido processo legal ao status de regra, fez clara opção pelo sistema processual acusatório, em conformidade com a abertura democrática vivenciada no período. No entanto, disposições do Código de Processo Penal datado de 1941 – não por coincidência, época em que vigia um regime totalitário no Brasil, e sendo ele a reprodução do Código Rocco da Itália fascista – tardaram a se adequar às premissas dessa racionalidade de pensar o processo.

Ex-presidente Lula. Crédito da foto: Théo Marques.

O princípio acusatório que unifica o sistema homônimo é regido pela ideia de dialeticidade processual, no sentido de que aquilo que é introduzido para julgamento posterior é feito pelas próprias partes, sendo o juiz tão somente o destinatário final da prova. Ao julgador, portanto, cabe apreciar os elementos trazidos regularmente pelas partes, de modo a atuar tão somente no controle de legalidade da produção probatória. Até a prolação da sentença, portanto, o juiz possui um papel de coadjuvante, cabendo às partes – mormente ao titular da ação penal, o Ministério Público – perseguir elementos mínimos para provar o alegado acima de uma dúvida razoável.

Paulatinamente, essa racionalidade foi incorporada à nossa legislação processual penal, tendo como exemplo a reforma do artigo 212, caput, do Código de Processo Penal, e parágrafo único do mesmo artigo, procedida no ano de 2008. A partir dela, o juiz tomou uma posição mais afastada da gestão de prova (não a excluindo, todavia), vez que a ele compete a realização de perguntas suplementares às testemunhas após a formulação de questões pelas partes. A reforma trazida pelo Pacote Anticrime – ironicamente proposto pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro – positivou, no artigo 3º-A do Código de Processo Penal, a adoção pela estrutura acusatória do processo penal e a vedação expressa da iniciativa probatória por parte do magistrado quando em conformidade com o papel da acusação.

No entanto, o ranço do sistema inquisitório ainda se faz presente no cotidiano forense.

O sistema inquisitório – sendo ele a antítese do sistema acusatório – recebe esse nome por ter ele nascido através da inquisição promovida pela Igreja Católica no Século XIII como forma de manutenção do poder desta. Nessa modalidade de se perseguir os crimes praticados no período, a principal prova era obtida pela extração da verdade através da confissão, obtida comumente sob práticas intensas de tortura. O inquisidor já tinha sua convicção formada antes mesmo do processo começar, sendo a tortura um instrumento de corroboração da culpa já formada antes mesmo de qualquer oportunização de produção de prova pela defesa. Tinha-se, portanto, a verdadeira manipulação e controle das premissas, de modo que tal tipo de operar muito interessou regimes totalitários durante a história.

De acordo com o professor de processo penal e advogado Aury Lopes Júnior, “é da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu”. Qualquer semelhança com a gestão de prova realizada pelos personagens mencionados no início do texto não é mera coincidência.

E daí que operar de modo a não deixar o juiz equidistante da produção probatória – tal como explicitado nas mensagens supostamente trocadas pelos personagens principais da Operação Lava Jato, e que acontecem nos bastidores do judiciário diariamente – indica a permanência do inquisitório, ao arrepio da legislação e do sistema constitucional processual penal vigente no nosso Estado e por hora Democrático de Direito, o que não pode ser tolerado por consistir em evidente violação constitucional e legal.

Em síntese, assim, não se pode admitir, tal como pretendem as camadas mais reacionárias da nossa sociedade, que os fins justifiquem os meios ao ponto de afastar garantias processuais apenas em razão da pessoa do acusado não satisfazer as preferências políticas ou morais da sociedade, visto que o processo penal não foi feito para tutelar o interesse das vítimas, mas para proteger o acusado do arbítrio estatal.


  • LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 56.
  • Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. (Redação dada pela Lei n.º 11.690, de 2008) Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
  • Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
  • COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Em Revista de Informação Legislativa, a. 46 n. 183 julho./set. 2009, pp. 103-115, passim.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima