O direito de opinião é um termômetro das ideias absurdas

Especialista em Direito Constitucional discorda do STF sobre prisão de Daniel Silveira. Para ele, parlamentares que discursam contra o regime democrático ajudam a mensurar o nível de doença da democracia

Com a prisão do deputado Daniel Silveira, o Supremo Tribunal Federal (STF) suscitou o debate sobre imunidade e inviolabilidade parlamentar e apologia à ditadura. A Lei de Segurança Nacional, que muito pouco foi usada desde a redemocratização, volta à tona. Em menos de um ano, Sarah Winter, Oswaldo Eustáquio e, agora, Daniel Silveira entraram em cana por conta dela.

Para entender esse movimento, o Plural conversou com o Mestre em Direito Constitucional e Pesquisador do Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR,  Renan Guedes Sobreira.  Ele explica como funcionam as prerrogativas dos parlamentares, discorda do STF em relação à prisão de Silveira e discute o uso da Lei de Segurança Nacional em um contexto de democracia. 

Como funcionam a imunidade e a inviolabilidade parlamentar?

Os parlamentares gozam de prerrogativas, que na verdade são proteção ao cargo e não à pessoa do parlamentar. Basicamente e historicamente são três: a inviolabilidade de opinião, a imunidade e o aforamento. Na nossa Constituição, estão no art. 53.

A inviolabilidade seria o direito de o parlamentar emitir opiniões e não ser punido; a imunidade seria a impossibilidade de ser preso ou, sendo preso, ter a questão analisada pela Câmara; e o aforamento é o que comumente se chama foro privilegiado. 

A imunidade exige que o crime cometido seja inafiançável e que o agente seja surpreendido em flagrante. Nesse caso, e apenas nesse, seria possível a prisão. Em até 24h da prisão, o STF tem que comunicar à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar. A Casa deve votar sobre a manutenção da prisão. Vota-se com maioria dos integrantes. A ideia é que a Casa legislativa avalie se a prisão em discussão tem natureza política – quando o parlamentar deve ser liberado – ou se não tem natureza política. Mas isso não está escrito em lugar algum. Isso é uma regra de costume histórico parlamentar. Na prática, os parlamentares decidem pelas mais obtusas razões e nem mesmo precisam externar a razão de seus votos. 

Enquanto eles decidem, é possível que a autoridade ofereça a denúncia, como ocorreu no caso de Daniel Silveira. O vice-procurador-geral da República Humberto Jacques de Medeiros ofereceu a denúncia contra o parlamentar. Nesse caso, a Casa legislativa pode votar se suspende o andamento da ação ou não. Então veja que a Casa legislativa decide em dois momentos: sobre a manutenção da prisão e sobre o andamento da ação.

Caso a ação seja suspensa for votação majoritária da Casa, só será retomada quando acabar o mandato do parlamentar. Então não se trata de impunidade. Ele será processado e julgado oportunamente, sem atrapalhar o exercício do mandato.

Por que os parlamentares gozam dessas prerrogativas?

As prerrogativas têm origem medieval e visam evitar que o parlamentar, figura recém-criada para fazer frente à monarquia, tivesse o mandato embaraçado de algum modo, sendo preso por qualquer motivo ou impedido de falar, por exemplo. Já nas Cortes de León, em 1188, constam as prerrogativas, ainda que tenham sido os ingleses e os franceses que melhor as desenvolveram depois. 

Essas figuras estão nas constituições de praticamente todos os países democráticos, porque visam proteger a autonomia do Parlamento, garantir a representação popular sem ataques externos.

O que explica a decisão do STF de prender o parlamentar Daniel Silveira? 

No caso de Daniel Silveira, o Supremo Tribunal Federal seguiu a sua linha jurisprudencial que é de dizer que não há inviolabilidade de opinião quando o parlamentar fala fora do mandato. Ou seja, fora do espaço físico do Parlamento é preciso avaliar se aquilo que o parlamentar disse tem a ver com o exercício do mandato ou não. Caso não tenha a ver, o STF entende que a inviolabilidade não protege. Se não protege, é possível responsabilizar e, sendo crime, é possível investigar e punir respeitando os critérios da imunidade. 

O Sr. concorda com a jurisprudência nesse caso?

Minha opinião de quem estuda o tema levaria a uma outra conclusão sobre o caso. Desde sempre tenho defendido que a inviolabilidade de opinião deve ser respeitada em extremo, o que inclui respeitar o discurso odioso de um parlamentar. E isso por várias razões.

A primeira, e que me parece mais interessante, é o que chamo de termômetro do absurdo. A inviolabilidade, se garantida sempre, permite que um parlamentar fale as mais acintosas barbaridades contra a democracia. Considerando que o parlamentar é eleito porque o eleitor sabe sua fala, suas ideias, e coaduna, quanto mais parlamentares com esse tipo de discurso, mais cidadãos com esse tipo de discurso. É possível então mensurar quantos brasileiros e brasileiras se filiam ao discurso odioso e, assim, aferir, como um termômetro, o nível de doença de nossa democracia. Se calamos os discursos com a ferramenta do medo do Poder Judiciário, o medo de reprimendas, não diagnosticaremos nunca o problema e, assim, nunca o trataremos. Assim, a inviolabilidade de opinião parlamentar funciona como termômetro das ideias absurdas que estão na sociedade e precisam ser tratadas.

Uma segunda vantagem dessa posição é a de orientação do tratamento dos absurdos. Ora, se há um candidato com discurso racista e outro com discurso homofóbico na região X e só o racista é eleito, sabemos que o eleitorado da região X tem ideias racistas, logo, não adianta direcionarmos políticas públicas anti-homofobia para a região X. Mais do que termômetro do absurdo, a inviolabilidade plena é orientadora do tratamento, mede a febre e direciona as soluções adequadas às regiões adequadas. Não só as políticas públicas, mas também as forças de segurança. Se há eleitores que defendem golpe de Estado e esse discurso elegeu um parlamentar, o Governo tem o dever de colocar as forças nacionais de segurança em alerta na região que elegeu o parlamentar a fim de coibir as práticas inadequadas. Há outras vantagens do instituto, mas são de ordem mais técnica e posso lhe falar, caso tenha interesse, mas acredito que para o caso Daniel Silveira, essas seriam as mais relevantes. 

Assim, entendo que nós, democratas, que desejamos que a democracia nacional se fortaleça e viceje prolongadamente, temos a obrigação de tolerar esses discursos odiosos, antidemocráticos, quando vindo de parlamentares. No caso, discordando da jurisprudência do STF, entendo que o parlamentar está sim protegido pela inviolabilidade e aí não haveria que falar em prisão ou qualquer tipo de responsabilização. 

Um dos motivos da prisão de Daniel Silveira foi a apologia à ditadura militar. O apresentador Ratinho, na última quarta-feira (17), disse em rede nacional que “está na hora de fazer igual fez em Singapura. Entrou um general, consertou o país e, um ano depois, fez eleições. Mas primeiro chamou todos denunciados e disse: ‘vocês têm 24 horas para deixar o país ou serão fuzilados'”. Ele também poderia ser preso?

Os cidadãos que não são parlamentes não gozam da proteção de que falamos, justamente porque não exercitam mandato algum. Então, o apresentador Ratinho, tendo feito apologia à ditadura, incidindo em um tipo penal, seja da Lei de Segurança Nacional ou qualquer outro, pode ser preso, como foi o parlamentar. O que ocorre de diferente é depois da prisão, já que o parlamentar goza de imunidade e o cidadão comum, não. No caso dele, creio que se enquadra no art. 22 da Lei de Segurança Nacional (Art. 22 – Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social), afinal, ele é uma pessoa cuja fala tem grande alcance social, o que pode configurar, a meu ver, mais do que uma mera opinião, pode configurar uma propaganda, uma apologia.

Sarah Winter e Oswaldo Eustáquio também foram presos com base na Lei de Segurança Nacional. Daria para traçar um paralelo com o caso de Silveira? 

Há, sem dúvida, um denominador comum nos casos Winter, Eustáquio e, agora, Silveira, que é atuação – seja fática, de financiamento, seja moral, como verbalização e apoio – contra o regime democrático, por discordar de posições jurídicas do Supremo Tribunal Federal. Parece-me um somatório da simpatia pelas ditaduras, moralismo que deseja se sobrepor à norma jurídica e ignorância com o papel do Poder Judiciário. Essa ignorância, creio, acomete grande parte da população, inclusive juristas. O povo despertou, digamos assim, nos idos de 2013 para a política e desde então temos visto mais engajamento, mais interesse pela política, pela atividade parlamentar e do Poder Executivo. E de repente, as pessoas estendem essa lógica de interesse e cobrança ao Poder Judiciário, como se sua atuação fosse política.

É óbvio que uma Corte Constitucional, como o STF, terá algum grau de influência política, mas sua atuação é pautada pela norma, é vinculada ao seu dever de fazer cumprir a Constituição e demais normas, havendo ou não interesse político. E aqui é que tudo se mistura. O seguimento da norma jurídica é visto como desagrado político, como se ao julgador houvesse opção política igual há aos parlamentares. E começam os ataques sociais por esse desagrado, sem entender a norma jurídica a que o magistrado está vinculado, desde o magistrado de piso até o magistrado da Suprema Corte. É salutar que as pessoas tenham despertado para a política, mas agora é preciso avançar e entender que o Poder Judiciário não funciona nessa lógica. Já ajudaria imensamente no progresso democrático, uma vez que parlamentares ignorantes sobre o funcionamento dos Poderes não seriam eleitos.

A Lei de Segurança Nacional foi criada e bastante usada pelos militares. Desde a redemocratização, no entanto, pouco se ouviu falar dela. Haveria um motivo para o artigo 22 passar a ser mais usado em um contexto de democracia?

Sobre a aplicação na Lei de Segurança Nacional no contexto democrático, creio que compete ao Poder Legislativo dar essa resposta. Muitos criticam a aplicação pelo Judiciário, esquecendo, de novo, que não cabe ao magistrado deixar de cumprir a norma. Se é uma norma vinda da ditadura, paciência, deve ser aplicada na medida em que não contrarie claramente a Constituição. No caso, não há uma contradição gritante. A contradição pode ser argumentativamente construída, mas não é algo óbvio, que obrigue a não aplicação. 

Seja como for, a incidência social nos tipos penais da Lei de Segurança Nacional tem sido mais frequentes dado o ambiente político do país, não é? A partir do momento que há uma legitimação discursiva do chefe do Pode Executivo Federal aos discursos de ódio, à subversão da democracia, à afronta aos Poderes da República, a cidadania se sente à vontade para seguir o (mau) exemplo.

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1 comentário em “O direito de opinião é um termômetro das ideias absurdas”

  1. Apesar de entender e respeitar a posição técnica do pesquisador entrevistado, tenho que discordar do ponto principal da argumentação, que é a ideia da opinião proferida pelo parlamentar representar proporcionalmente a opinião de seu eleitorado, por dois motivos: primeiro, as eleições dos parlamentares não são diretas, o que leva muitos parlamentares de votação inexpressiva a ocupar cadeiras puxados por candidatos aberrantemente bem votados; segundo, não há possibilidade de recall de parlamentares, nem cobrança de manutenção de suas posturas e promessas eleitorais, o que faz com que a mudança de postura, ou mesmo a mentira na campanha, não se reflitam na mudança do eleitorado. Não podemos ainda ignorar o fato das pessoas não necessariamente terem votado no candidato por essa postura específica, como fica óbvio no exemplo do presidente, cujas posturas foram amplamente ignoradas por eleitores que se apegaram unicamente ao seu discurso no campo econômico. Se o parlamento fosse realmente um reflexo da sociedade, certamente estaríamos em situação ainda pior que a já calamitosa que todos conhecemos.

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