A multilateralidade da guerra

O discurso de liberdade da Ucrânia em deliberar adentrar - ou não - na Otan é coerente no mundo teórico, mas na pragmática realidade vigente, ele é surrealmente inocente

Soa-me evidente o discurso da instrumentalização da propaganda estatal russa no sentido de atribuir propósito positivo à guerra na Ucrânia.

Igualmente válida, porém consideravelmente menos evidente, é a análise que nos atinge no mundo ocidental a propaganda da esfera política de poder dos Estados Unidos e União Europeia.

Nesse sentido, há coerência em atribuir parcialidade no conteúdo que abastece o telejornal de nosso cotidiano, eis que este traduz retrato interpretativo dos interesses de uma esfera de poder, a qual antagoniza os russos e, conjunturalmente, apoia a Ucrânia, de origem americana e europeia.

Ergue-se assim, portanto, validade teórica no raciocínio que reconhece a dantesca tirania de Putin, mas que, pari passu, aceita a proposta de discutir se nossa atual condição advém de responsabilidades compartilhadas ocultas às reflexões mais rasas.

Elaboro raciocínio pragmático: a “RealPolitik” da coisa. Isto é, as considerações práticas, não nudas da interpretação moral, mas essencialmente livres do viciado raciocínio auto-centrado, podem deliberar conclusões mais amplas.

Empresto metáfora que ouvi de Reinaldo Azevedo e achei sensacional: Provocar a onça com a vara curta, mesmo com a espécie em extinção, não é uma boa ideia, porque, especificamente aquela que foi cutucada, pode de matar.

Há que se reconheça, na esfera militar, imenso protagonismo russo no mundo cotidiano. Independentemente de desempenho superior de grupos econômicos ocidentais, o poderio bélico russo é amplamente suficiente para condicionar seu temor mundial.

Ainda, a historicidade do último século concedeu à Rússia protagonismo bastante para ocupar a prestigiada posição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU – herança valiosa da segunda guerra mundial -, isto é, um virtual ingresso VIP na cadeira da mesa de decisões do destino da humanidade.

O discurso de liberdade da Ucrânia em deliberar adentrar – ou não – na Otan é coerente no mundo teórico, mas na pragmática realidade vigente, ele é surrealmente inocente.

Explico. A potencialidade subjetiva da Ucrânia se filiar como preferir e com quem quiser não ofusca a repercussão prática dessas decisões, daí se desdobra uma conclusão muito evidente: simplesmente poder, isto é, ter a capacidade para tal e efetivamente esta decisão ser conveniente, são coisas totalmente diferentes.

A ocidentalização dos vizinhos da Rússia é objetivo histórico de protesto de Putin na última década. Exemplos de invasões semelhantes ocorreram em outras regiões, com paradoxal silêncio e conivência geopolítica do Ocidente.

Policiais ucranianos tentam apagar incêndio. Foto: Agência Brasil.

Convido-os ao raciocínio: decisões são competência subjetiva, mas suas repercussões são objetos da decisão individual de outras partes, o que poderia – ou melhor, deveria – impactar a subjetividade deliberativa inicial.

Assim, a Ucrânia, que de democracia liberal conhece quase tão pouco como a Rússia, assumiu deliberado e explícito risco ao se aproximar da Otan, pagando amargo preço atual.

Ainda, há que se questione a mal posicionada Ucrânia em rankings de democracia na efetiva legitimidade de seu governo em agir (ou mesmo identificar) de acordo com os legítimos interesses nacionais, os quais podem ter sido pervertidos e polarizados por grupos econômicos lado e a lado da visão ocidental da situação.

Aqui não se pretende, em absoluto, em destituir de culpa os abusos sanguinários e tirânicos de Putin, mas da compreensão estrutural dos fatos.

Observe ainda outras fragilidades. As informações advindas do governo ucraniano não são objeto de qualquer fact-checking, isto é, são tidas como verdade conveniente – não necessariamente fática – do discurso e propaganda que os interesses da esfera de poder ocidental detém.

Outra potencial irresponsabilidade é a Ucrânia tomar a decisão de armar até os dentes qualquer sujeito que consiga empunhar uma pistola, longe da disciplina e visão militar. Alguém é capaz de supor que a totalidade da população estará unissonamente interessada com estes recursos naquilo que pertence aos interesses da população ucraniana, ou quiçá que saiba no que isto consiste?

Ex-presidiários ucranianos com experiência de guerra ou combate estão recebendo perdão federal e sendo liberados para se juntar aos frontes de guerra. Alguém é capaz de supor que todos estes estão com o melhor interesse da pátria no coração? Ou que literalmente fomentar milícias condenamente criminosas com verba e recursos armados do Estado dará certo?

O que exatamente irá acontecer com os armamentos entregues à Deus-dará para população ao final da guerra? Os grupos que foram organizados e as lideranças populares armadas pelo governo farão o que com todos estes recursos? Não foi exatamente assim que nasceram os grupos terroristas que os Estados Unidos e União Europeia se desafiam a combater mundo a fora?

As próprias medidas de constrição econômica à Rússia terminam de globalizar o conflito, respingando reflexos do embate de norte a sul, leste a oeste do globo. O que tem dois grandes efeitos, quais sejam amargar os prejuízos da guerra no bolso de todos, mas especialmente daqueles com bolsos mais vazios e, ainda, pressionar Putin a condições progressivamente mais isoladas e acuadas.

Na perspectiva de efetiva resolução do conflito, isto é, no mais breve possível cessar fogo, isolar os russos trará simultaneamente a escassez dos canais de comunicação entre as partes, e, mesmo que seja entendido como terapêutico desmontelar a economia russa e, consequentemente, também seu governo, coloca Putin numa posição em que investidas mais agressivas, inclusive potencialmente nucleares, possam ser necessárias para retornar à mesa de negociações com peso político suficiente para poder voltar a impor suas vontades, consequentemente escalonando o conflito.

O episódio da maior usina atômica de energia da Europa é perfeito exemplo da guerra de discursos. Dizem os ucranianos que os russos invadiram o local, bombardearam e quase provocaram uma catástrofe nuclear. Dizem os russos que a usina já estava sob poder de russo há uma semana e que o incêndio no local foi subproduto de forças milicianos e militares ucranianas numa invertida contra os russos no local.

Se a versão russa tiver algum nível de fidedignidade, é possível que um conglomerado de para-militares de lunáticos ucranianos tem quase provocado o maior acidente nuclear da história da humanidade.

Observe que, se forma realista, não há evidência cabal para endossar ou recusar qualquer uma das duas versões.

Entretanto, essa quase catástrofe atingiria os europeus – e todo Ocidente, na realidade – em proporção, observe e aqui reflita, menos que atingiria os próprios russos! A aventada usina guarda maior proximidade geográfica, sendo portanto alvo de maior impacto ante eventual desastre, das grandes capitais e centros comerciais russos, ao que guarda de proximidade de fronteira com os grandes centros comerciais da Europa ocidental.

Seria do interesse de Putin esparramar radiação pela Eurásia, atingindo primeiramente a si mesmo e dando razão para forças da Otan subirem ao palco?

O contexto, ao menos para fins de reflexão, não guarda a necessidade do exercício do benefício da dúvida? Isto é, não são questionamentos que te levam, ao menos, a pensar sobre a legitimidade temática do discurso de imprensa que permeia nossa realidade ocidental?

Afirmar que Putin opera esfera de influência de sorte a construir e propagar as versões de interesse particular da realidade e não reconhecer que estamos nós mesmos imersos em meio geopolítico igualmente sujeito a propaganda e versões da esfera de interesse ocidental, notadamente dos Estados Unidos e União Europeia seria tremenda inocência.

Aqui não se pretende culpabilizar a principal vítima, no caso, a Ucrânia, mas essencialmente compreender que a visão maniqueista dos caminhos que nos trouxeram até aqui – o mundo dividido entre mocinhos e vilões – é tosca e pobre.

Também é sobre perceber, aqui ainda mais importante e eloquente análise – que a solução mais eficiente para reestabelecimento da paz requer necessariamente o abandono da dicotomia de demonizar Putin e conceder imunidade de críticas das decisões e ações ucranianas, reconhecendo ainda que estamos imersos em ambiente geopolítico ocidental com brutal tendência de enviesar de forma favorável o atual governo da Ucrânia.

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1 comentário em “A multilateralidade da guerra”

  1. É claro que tem-se que apurar todos os fatos dos dois lados. E isso não é uma novidade agora. Em todas as guerras sempre existiu campanha de desinformação. Mas entre quem está certo e quem está errado nesse caso é muito claro. Mesmo com tudo que a Ucrânia e/ou OTAN possa ter feito de errado, nada, absolutamente nada, justifica a invasão do Putin. A Ucrânia estava longe de entrar para a OTAN, e mesmo que estivesse perto, seria uma decisão de um país soberano com governo democrático eleito pela maioria. O Putin não tem o direito de ficar policiando e decidindo por outros países. Se os ex-soviéticos querem se aliar ao acidente, essa decisão cabe somente a eles. E, obviamente, vendo um governo autoritário com o do Putin não é difícil entender porque eles desejam ficar do outro lado.

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