“O acontecimento” adapta livro poderoso da francesa Annie Ernaux

Filme que faz parte do Festival Varilux de Cinema Francês fala de uma jovem que procura ajuda para interromper uma gravidez indesejada

Talvez a coisa mais impressionante a respeito de “O acontecimento” (além de uma cena, mais para o fim, que deve ficar na memória para sempre) é que ele consegue respeitar o poderoso livro de Annie Ernaux e, ao mesmo tempo, criar algo novo. Um filme que remete ao livro e impressiona como cinema.

No filme de Audrey Diwan, a jovem Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) estuda na faculdade de Letras e, com um misto de curiosidade e coragem, vai desbravando a vida adulta que se apresenta. Ela saiu há pouco da casa do pais e mora numa república de estudantes cercadas de colegas. Parece que ninguém é muito próximo e a convivência chega a ser algo meio hostil.

Um dia, semanas depois de ter saído com um cara desinteressante, ela descobre que está grávida. Sem hesitar nada – e com coragem e determinação que só crescem ao longo do tempo –, ela decide não ter o bebê.

O problema é que, na França do início dos anos 1960, onde se passa a ação (e que lembra de maneira assustadora o Brasil de 2022), fazer um aborto era um crime grave. Tão grave que as pessoas, incluindo os médicos, mal conseguem pronunciar a palavra aborto. Daí o título ser “o acontecimento”. Na época, temia-se que qualquer orientação do médico a respeito desse tipo de evento pudesse ser interpretada como cumplicidade.

Então Anne não pode contar com os médicos. Não pode falar com os pais a respeito da gravidez. Não tem amigas muito próximas. E o homem que a engravidou, que poderia ajudá-la, é um covarde.

Diante dessa situação, e com sua coragem peculiar, ela começa um périplo que envolve lugares e pessoas – e atos desesperados.

“O acontecimento”

No livro “O acontecimento”, Annie Ernaux narra os eventos passados como numa espécie de depoimento, ou de acerto de contas. Ela briga com as memórias, sofre ao resgatá-las, se incomoda por não conseguir lembrar detalhes de uma ou outra situação. “A única memória verdadeira é material”, escreve ela, sobre a “questão da evidência” – fotos, diários e agendas que consulta ao longo do processo.

Ao longo do relato, a escritora faz alguns parênteses para colocar no texto as impressões da mulher que ela é no momento em que escreve o relato – como na frase sobre a memória ser material. Porém, essa voz não aparece no filme.

A adaptação de “O acontecimento” se concentra na jovem que ela foi, no relato passado, mas torna esse relato presente. O filme, afinal, se situa nos anos 1960. Assim, o drama vivido por Anne se desenrola diante de nós e, aos poucos, ganha traços de suspense e até de terror. Não é um filme fácil de ver e nem poderia ser. Mas tem força, tem impacto. Exatamente como a história que ele conta.

Onde assistir

“O acontecimento” faz parte da seleção do Festival Varilux de Cinema Francês e será exibido na próxima terça-feira (5), no Cineplex Batel, do Shopping Novo Batel.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em ““O acontecimento” adapta livro poderoso da francesa Annie Ernaux”

  1. Impressionante como o tempo passa e as coisas não mudam. E se mudam é tão lentamente que são imperceptíveis. É assim o caso do aborto, um direito inalienável, uma questão de necessidade, tratada, como no Brasil de hoje, como crime.

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