“Pura paixão” carece da frieza intelectual de Annie Ernaux

Filme em cartaz na Netflix adapta livro em que a escritora francesa procura entender a relação que teve com um homem estrangeiro e casado

Um livro difícil de adaptar para o cinema provavelmente tem poucos diálogos, não se preocupa em seguir uma trama, não tem “ação”. E os livros de Annie Ernaux, a francesa que venceu o Nobel de Literatura em 2022, são bem difíceis de adaptar por esses motivos e por outros mais.

Com exceção talvez de “O acontecimento”, que tem como enredo a jornada de Ernaux para conseguir fazer um aborto clandestino na França dos anos 1960, livros como “O lugar” e “A vergonha” são feitos de memórias da escritora e das observações que ela faz sobre essas memórias. É Ernaux pegando as experiências vividas e extraindo delas algum sentido.

Annie Ernaux

“Pura paixão”, em cartaz na Netflix, transforma em filme o livro “Paixão simples”, publicado no Brasil pela Objetiva no fim dos anos 1980 e hoje fora de catálogo. Há expectativa de que a Fósforo publique uma nova tradução em breve. No livro, Ernaux fala sobre a relação que teve com um homem estrangeiro e casado, do qual ela sabia pouco (ele era russo e tinha alguma espécie de cargo diplomático que o levava à França de tempos em tempos).

O interesse de Ernaux é menos no tal russo tatuado e mais no efeito que essa relação tem sobre ela. Transar com esse homem vira a razão de ser da vida dela, uma obsessão que ela tenta entender. Quando não está na cama com o russo, ela não pensa em outra coisa a não ser voltar para a cama com ele, então negligencia o filho e parece alheia ao mundo. Ela vive uma vida monotemática.

“Pura paixão”

Danielle Arbid, a diretora de “Pura paixão”, mostra coragem para lidar com o livro de Ernaux, mas é muito estranho o recorte que ela faz da obra. A cineasta não tem nada parecido com a frieza intelectual de Ernaux e acabou cometendo o único erro que não deveria cometer: fez a personagem ser obcecada pelo homem, deixando de lado as consequências e análises, e também o aspecto literário da experiência.

A mulher que, no livro, é a escritora Annie Ernaux (ou a versão de si que ela coloca no papel), no filme vira uma professora de literatura que age como vítima, como um clichê, o que talvez seja a pior parte da adaptação. A não ser por esse detalhe da profissão da personagem, a literatura inexiste no filme, embora seja uma parte importante do livro. Nada que Ernaux faz é dissociado do ato de escrever e vice-versa.

Num livro em que fala sobre outra relação que marcou sua vida (“O jovem” é o nome desse), Ernaux diz: “Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever. Queria encontrar, na sensação de cansaço e de desamparo de depois, motivos para não esperar mais nada da vida”.

Sem a literatura para iluminar o que se passa, “Pura paixão” virou só mais um filme meio erótico sobre uma paixão tóxica. Para piorar, ele é pontuado por cenas quentes – talvez faça mais sentido dizer que o filme gira em torno dessas cenas, assim como a vida da protagonista Hélène –, mas várias parecem ter saído de um soft porn qualquer. Só faltam as velas e a trilha sonora brega.

Se quiser ver um bom filme inspirado na obra de Annie Ernaux, experimente “O acontecimento”, na HBO Max.

Onde assistir

“Pura paixão” está em cartaz na Netflix.

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