Sanepar sabia que ia faltar água… desde 1995

Documentos já previam RMC no limite do abastecimento e indicavam preservação de mananciais e novos investimentos

Em plena pandemia de Covid-19 os moradores de Curitiba e Região Metropolitana (RMC) se veem sem água. Começou com cortes pontuais em março, mas hoje a cada 36 horas uma parte da população entra no rodízio e fica sem abastecimento. Há, ainda, a possibilidade dos cortes passarem a durar 48 horas se o nível dos reservatórios chegar em 25%. A falta de água na região, no entanto, é um problema já previsto desde 1995, que poderia ser diferente se houvesse preservação de mananciais e investimentos em novas fontes de captação e reserva.

Em comunicados à imprensa e ao público em geral, a Sanepar atribui o problema de falta de água à escassez de chuvas, que afeta os municípios da Grande Curitiba desde o segundo semestre de 2019. De fato, vivemos uma estiagem histórica. No entanto, essa narrativa não representa toda a verdade, conforme apurou o Plural.

Desde a década de 1990, a companhia sabia que havia um desafio em manter Curitiba e RMC abastecidos. Há disponibilidade de água, mas as bacias que fornecem para as Estações de Tratamento já naquela época sofriam com a ocupação do entorno. A outra possibilidade, o aquífero Carste, tem alto custo financeiro e ambiental.

Se os mananciais não dessem conta do abastecimento, a solução seria ir buscar água a mais de cem quilômetros da capital, aumentando drasticamente o custo da captação. Ou aumentar o número de poços para captação subterrânea.

De lá para cá, no entanto, o sistema de abastecimento evoluiu apenas 9,95% e continuou no limite da capacidade para atender mais de três milhões de pessoas dos dez municípios do Sistema de Abastecimento Integrado de Curitiba (SAIC).

É essa situação que deixou a RMC fragilizada diante do risco de estiagem.

Mananciais

Fonte: IBGE

De 1990 até hoje, as previsões de estudos técnicos sobre o assunto verificaram que a cidade cresceu num ritmo menor do que o esperado. Mas os municípios do entorno cresceram rapidamente, aumentando a pressão não só sobre o consumo de água, mas também sobre os mananciais que abastecem a região.

“Nem Curitiba nem a Sanepar investem na preservação dos mananciais”, diz o ambientalista Clóvis Borges. A água consumida pelos curitibanos tem origem nos municípios da Região Metropolitana, principalmente Piraquara, Pinhais e Colombo, que entre 2010 e 2020 cresceram, em média, 18%, enquanto Curitiba viu sua população aumentar em 10%.

Com os mananciais da RMC sob pressão, restará a Curitiba a exploração de fontes de água potável mais distantes (portanto, mais caras) e a ampliação da exploração do aquífero Carste, que – segundo a Carta das Águas Subterrâneas do Paraná, do Ministério do Meio Ambiente, de 2015 – tem 95% da área referente ao decreto 6.194/2012 como de extrema vulnerabilidade à contaminação.

Relatório japonês

A história real do porquê Curitiba e Região estarem sem água começou em 1994. Naquele ano, o governo brasileiro, na ocasião comandado por Itamar Franco, encomendou ao governo do Japão um estudo sobre o uso de recursos hídricos no Paraná. A tarefa de produzir a análise ficou a cargo da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), que formou um time de especialistas e concluiu o trabalho em dezembro de 1995.

O relatório final, que é dividido em quatro partes, trata do estado inteiro, mas dedica uma parte importante a Curitiba e RMC. Na seção de diagnóstico, a equipe aponta os principais desafios na manutenção do acesso à água para consumo. Entre eles: o aumento do esgoto doméstico e industrial, a poluição, a redução da área verde preservada e a deterioração das margens dos rios causada pela ocupação ilegal e desordenada

Numa análise específica da Região Metropolitana de Curitiba, os japoneses apontavam que, em 1993 a demanda na região era de 7 mil litros por segundo, e a previsão para 2015 era de 15 mil litros por segundo, considerando a expectativa de crescimento populacional. Para enfrentar esse aumento, os japoneses indicavam investimentos na extração de água tanto na superfície quanto subterrânea, o que daria conta dos quase 8 mil litros de água por segundo necessários até 2015.

Previsão de demanda de água para consumo na RMC. Fonte: JICA

“Baseado no estudo, a respeito do desenvolvimento de água na Região Metropolitana de Curitiba, o equilíbrio entre demanda e capacidade de abastecimento será muito justo. Além disso, problemas com a qualidade da água, resíduos sólidos e outros problemas ambientais serão ampliados a ponto de ameaçar a vida humana”, afirmavam os japoneses já em 1995.

Na previsão, eles apontavam que a RMC teria uma população de 3,1 milhões de pessoas em 2015, exigindo 15 mil litros de água por segundo disponíveis para atender a todos. Neste ano de 2020, só os dez municípios atendidos pelo Sistema de Abastecimento Integrado de Curitiba (SAIC) somam 3,2 milhões de pessoas. 

Plano estratégico

Não foram só os japoneses que identificaram a necessidade de aumentar a produção e reserva de água para consumo. A Sanepar fez projeções próprias. Em 2000, quatro engenheiros da empresa apresentaram – no Simpósio Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental – um estudo dos limites do desenvolvimento urbano na RMC, impostos pelas limitações de produção de água na região.

O trabalho levava em consideração três cenários de preservação, ou não, dos mananciais que atendem a capital e arredores até 2050. “Nas condições do cenário de disponibilidade de recursos hídricos, considerando a inexistência de programas efetivos de conservação de mananciais, toda a potencialidade das bacias indicadas seriam esgotados entre os anos de 2030 e 2035 para o crescimento máximo entre os anos 2035 e 2040 para o crescimento mínimo”, diz o estudo.

Previsões no ano 2000. Fonte: Sanepar

O texto se refere às bacias do Altíssimo Iguaçu, do Alto Iguaçu e do Várzea. Os técnicos analisaram, já naquele momento, que a ocupação desordenada e o desenvolvimento industrial da região, a possível exclusão do rio Iraí e do rio Itaqui, num processo que resultaria na perda de produção de até 6 mil litros de água por segundo. 

Desde 1996, com um decreto assinado pelo então governador Jaime Lerner, a região dos mananciais é área de interesse e proteção especial. Em 1998, foi instituído, ainda por Lerner, o Sistema Integrado de Gestão e Proteção dos Mananciais, com a criação do Conselho Gestor dos Mananciais da Região Metropolitana de Curitiba, responsável por avaliar e acompanhar as políticas de uso de solo relativas a área junto aos municípios envolvidos.  Mas a pressão sobre o sistema permaneceu.

Em 2011, a Sanepar encomendou uma nova revisão do Plano Diretor do Sistema de Abastecimento Integrado de Curitiba, publicada em 2013. O documento reviu as previsões de evolução populacional da RMC, bem como de consumo de água por economia (unidade consumidora). Nesse panorama, o Plano Diretor previa que, em 2020, a região chegaria a um milhão de unidades consumidoras, mas teria demanda média estimada de 8,8 mil litros por segundo com máxima de 10,6 mil litros por segundo.

Fonte: Plano Diretor de Curitiba

Na avaliação dos autores do plano, “comparando-se a produção atual com a demanda máxima/dia esperada para 2010, verifica-se que a produção atual não é suficiente para tanto. A produção atual de 9.295 l/s menos a demanda máxima/dia de 9.734 l/s resulta em um déficit de 440 l/s”. A situação iria se acentuar no decorrer dos anos, caso novas obras de captação e reserva não fossem realizadas.

O principal ponto “fraco” identificado no documento é a estação de tratamento do Miringuava (em São José dos Pinhais), que tinha, na ocasião, potencial de produção de 900 litros por segundo, mas nos períodos de estiagem apresenta redução desse potencial para 700 litros por segundo. “Com o sistema Miringuava restringido na estiagem, ocorre sobrecarga nos demais centros produtores. Mesmo com a produção do Miringuava por volta dos 900 l/s ainda haveria déficit.”

O plano previa o aumento de produção das ETAs Iraí, Barigui, Passaúna e Iguaçu, o que foi realizado, garantindo uma vazão extra de 1.100 litros por segundo. 

Todos os documentos citados até agora também apontam outro desafio da região: as características climáticas, com período de estiagem recorrente entre os meses de abril a setembro.

Miringuava

Imagem feita pela auditoria mostra material abandonado na obra do Miringuava. Foto: TCE

O Plano Diretor do SAIC de 2013 indicava a necessidade de realização da obra de barragem de regularização do rio Miringuava, a qual permitiria a vazão do sistema em 2.000 litros por segundo, compatível com aeEstação de tratamento já implantada naquela época, com capacidade instalada de 2.000 litros também. No entanto, como só estava implantada à época a barragem de nível, a vazão ficou limitada a 900 litros por segundo.

A previsão era de que essa obra fosse concluída até 2016, garantindo um incremento na produção de água e a regularização da produção, mesmo em tempos de estiagem. Seria um fôlego extra para que o sistema, já sob pressão e sem muita folga entre a demanda e a oferta de água, pudesse lidar com situações limite como a estiagem mais acentuada que atinge a Região de Curitiba este ano.

O único problema: a obra da barragem não ficou pronta em 2016. O projeto em si estava pronto já em 2001, mas previa a inundação de uma área que atingiria diretamente cerca de 100 famílias da Colônia Muricy, uma colônia tradicional na região, que há mais de cem anos vive da agricultura e da pecuária. Como a área foi declarada de utilidade pública, o prejuízo para o grupo seria grande. 

Abandono e falta de produção colocariam a obra e a população local em risco. Foto: TCE

Em 2002, os moradores reagiram. Reunidos em duas associações, entraram na Justiça com uma Ação Civil Pública contra a Sanepar e o Governo do Paraná. O processo se arrastou até 2011, quando o TJ julgou os últimos recursos, liberando a Sanepar para seguir com a obra.

Em 2016, data em que se previa, no Plano Diretor, a conclusão da barragem, foi licitada a primeira fase da obra. Segundo a Companhia, “a ação levou a Sanepar a modificar três vezes o eixo da Barragem”. 

Daí para frente, a obra sofreu outras interrupções. A empreiteira responsável foi trocada. E no início de 2019, as obras do Miringuava estavam completamente paradas. Em um relatório do Tribunal de Contas do Paraná de abril de 2019, a comissão de auditoria apontou “fortes indícios de obra paralisada e abandonada (26/4/19), sem manutenção alguma, diante das condições dos equipamentos e deteriorização da obra, do entorno e sem a segurança aos populares”.

Abandono causou perda de partes já executadas da obra. Foto: TCE

O abandono, diz o texto, causou a perda de parte das ações já executadas. “Neste cenário, há fortes indícios de abandono, incúria e grave desperdício dos recursos públicos envolvidos nesta empreitada, sem a cobrança judicial, penal, civil e administrativa dos responsáveis técnicos e fiscais da própria Sanepar, bem como, das empresas envolvidas neste evento danoso no que diz respeito à segurança da construção da barragem.”

Na ocasião, dois processos em relação à obra tramitavam no TCE. Um deles resultou este ano, em agosto, em multas aplicadas a oito gestores da Sanepar, conforme mostrou o Plural. O voto do relator, o conselheiro Fernando Guimarães, “considerou que oito agentes da empresa permitiram que questões burocráticas atrapalhassem a formalização de aditivos contratuais com as empreiteiras responsáveis pelas obras, o que resultou em seu atraso”.

Segundo a Sanepar, o atraso provocado pelos processos “foi de nove anos, com impacto de 14 anos, considerando os ajustes realizados para atender à decisão judicial”. A empresa também aponta que sofreu impedimentos por parte do Tribunal de Contas e só conquistou o direito de romper o contrato com a primeira empreiteira contratada, a Catedral, em 2020.

Lucros e investimentos

Na esteira de tudo isso, o SAIC viu muito pouco mudar de 2010 a 2020. Segundo dados da própria Sanepar, nestes dez anos, a produção de água para o sistema evoluiu 9,95%, com incrementos nos sistemas já instalados. A maior parte da ampliação da disponibilidade de água viria mesmo do Miringuava, se a represa tivesse ficado pronta.

Fonte: Sanepar

Enquanto isso, os números da empresa no mesmo período tiveram um comportamento diverso. A tarifa de água e esgoto variou 173,81% no período entre 2011 e 2019. Já o lucro líquido e os dividendos avançaram 697,01% e 788,18% respectivamente. Os investimentos, ou seja, os valores colocados na melhoria e ampliação do negócio-fim da empresa tiveram o menor índice: 158,56%, segundo cálculos realizados, a pedido do Plural, pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

O bom desempenho da distribuição de dividendos para acionistas pela Sanepar é resultado da ampliação da distribuição dos lucros para acionistas de 25% para 50%, determinada em 2013.

Essa alteração beneficiou principalmente o governo do Paraná, principal acionista da empresa, e representou uma injeção significativa de recursos no caixa da estatal. Também foi uma boa notícia para os demais acionistas, que passaram a ver o investimento ter maior resultado.

Na prática, foi um alívio para o caixa exaurido do Estado. Mas também quer dizer menos dinheiro para investimentos no abastecimento, na coleta e tratamento de esgoto.

Claro, nem todo esse dinheiro é investido diretamente na Grande Curitiba mas a RMC representa cerca de 25% da receita da empresa. Segundo a Sanepar, entre 2003 e junho de 2020, foram feitos investimentos de R$ 2,3 bilhões na RMC e o Plano Plurianual de Investimentos (2020-2024) prevê mais R$ 1,6 bilhão.

Confira aqui todos os documentos apurados na reportagem. O conteúdo é exclusivo para assinantes do Plural.

Sobre o/a autor/a

20 comentários em “Sanepar sabia que ia faltar água… desde 1995”

  1. Vinícius Eduardo Wassmansdorf

    Olá!

    Eu já deveria ter comentado antes nessa matéria, pois utilizei algumas informações ao preparar uma aula de Geografia pros meus alunos sobre a crise hídrica na RMC.

    Parabéns pelo levantamento de dados e informações que deixaram a matéria mais potente.
    Precisamos de mais jornalistas como vocês, pois materiais como este ajudam a ampliar o debate e mostrar que o problema vai muito mais além da simples e rasa “falta de chuva”.

    Enfim, sou muito grato pelo trabalho de vocês! Continuem produzindo conteúdo de qualidade…

  2. Agora nao tem como,,,O GOVERNADOR, tem que resolver o problema…Vamos Mocinho…tira a bunda da cadeira, comeca a trabalhar…isso nao e programa de auditório, nem besteirol, o problema e serio…

  3. Parabéns pelo trabalho de jornalismo investigativo.
    O indicador mais assertivo é a relação entre a capacidade dos reservatórios em metros cúbicos dividida pelo número de habitantes.
    Se obter os dados de 1995 e comparar com os dados de agora verá o quanto se deixou de investir na capacidade do sistema pela Sanepar no período dos últimos 25 anos.

  4. Muito boa a reportagem.

    Vcs teriam a informação da demanda de água na RMC em 2020 [seria algo em torno de 10000litros/segundo]? Procurei a informação no site da SANEPAR e em outras fontes e não encontrei.

      1. Oi Rosiane! Obrigado pelo retorno. Então, neste Plano Diretor de janeiro/2013, encontro a projeção da época do que seria provável acontecer em 2020. Mas existe a informação atual de quanto é o consumo diário de água em Curitiba e na RMC? [por exemplo, no dia 26/09/2020, foram consumidos x litros de água na cidade de Curitiba e na RMC]

        1. Rosiane Correia de Freitas

          Então, eu solicitei essa informação para a Sanepar, não me responderam. Na realidade mandaram uma nota enorme com várias informações (ao invés de responder pergunta a pergunta), mas sem essa.

  5. Parabéns pelo belo trabalho jornalístico, de pesquisa e análise da questão. A sociedade precisa de informação de qualidade, e canais como o Plural nos ajudam a acompanhar e compreender a nossa realidade.

  6. Isso se chama ganância. Cobrar muito e entregar pouco. Agora, são capazes de, a medida da que se tornar mais escassa, vão subir o preço para conter o consumo. Novamente, entra a ganância pelos lucros. Cobrar muito mais para entregar ainda muito menos. Quem vai ou quem pode dar uma prensa na SANEPAR?

  7. Rogerio Pinto Muniz

    Eu era o Diretor Técnico no periodo em que a Jaica fez aavaliações. Iniciei a exploração do Aquifer Karst e reduzimos o necessário transporte de água do Rio Iguaçu para a região Norte Metropolitana. O diretor presidente não apoiava a iniciativa. Os austríacos dirigem as águas do Alpes para regiões sedimentares e obtém água de qualidade. Iniciei um projeto semelhante para carregar águas da encosta oeste da Serra do Mar para os areais do Rio Iguaçu. Mandei furar um poço neste areal para estudar as condições de aproveitamento. Estava para iniciar a possibilidade de trazer as águas do Segundo Planalto para a região leste da metrópole, mas não deram continuidade após minha saída. Antes de ser diretor administrei pela Sanepar a área operacional metrpolitana por 10 anos e sabia que teríamos problemas. Curitiba e cidades vizinhas estão localizadas na parte mais alta do Primeiro Planalto. Os paulistanos tratam aguas captadas em Minas Gerais. É grave o problema. Estou a disposição para conversar sobre este importante assunto.

    1. Bom dia, Sr Rogério Muniz. Por que abortaram a sua pesquisa? Me pareceu adequada, se temos nascentes na Serra do Mar para atender tal demanda, as encostas deveriam ser melhor aproveitadas. De quem devemos cobrar, da Sanepar ou do Governo municipal ou estadual? Se há solução, devemos cobrar, estamos bem próximos das eleições e podemos exigir respostas e soluções! Agradeço pelo seu comentário.

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