Que culpa cabe aos jovens na tragédia que vivemos?

Quem frequenta bares e festas em plena pandemia erra, mas também é um alvo fácil para desviar a atenção de outros vilões dessa história

Sexta, pouco mais de uma hora antes do governador anunciar novas restrições por conta do colapso do sistema de saúde do Paraná, eu estava num papelaria comprando cadernos para meu filho. A atendente, que já me reconhece (é o único comércio que frequento com regularidade desde o início da pandemia), pergunta se vamos ter lockdown. Respondo que não sei, mas que seria necessário, dada a piora na situação.

“Esses jovens não sossegam em casa”, lamenta de bate e pronto.

A moça ecoa uma fala lugar comum entre as autoridades da cidade. São os jovens que não param em casa, que insistem em frequentar festas, não usar máscara, beber, beijar, fazer sexo. Em Curitiba, mais de uma vez a secretária municipal de saúde usou coletivas de imprensa e lives para falar que são esses jovens que contaminam pais, avós, tios.

No Twitter, única rede social que acompanho, faz sucesso um perfil que denuncia festas em todo o Brasil. A cada cena de gente dançando, bebendo, um rosário de ofensas contra o escárnio que aquilo representa. O que essa gente tem na cabeça? Não sabem que há milhares em UTIs de todo país, entubados. De cada 5 nesta situação, dois irão morrer.

Não dá para entender mesmo, mas será justo eleger esses jovens como os vilões do colapso do sistema de saúde? Um vilão é um elemento narrativo que serve a um propósito claro: sublinhar o que é bom no herói, personificar os desafios que o herói enfrenta e, no fim, a derrota desses obstáculos quando o protagonista se aproxima do clímax.

Não é diferente no debate público. Eleger um inimigo em comum é ajudar a massa a se organizar do lado do herói e aprender a reconhecer a vilania.

Você pode pensar, mas quem é o herói? Não temos um herói, mas temos candidatos claros ao papel, notoriamente nossos governantes. E como estes não podem ser admirados pelas atitudes nos últimos doze meses, querem garantir capital heróico nas costas das falhas dos outros.

É justo culpar os jovens pelo colapso? A Agência Mural fez uma reportagem no início de fevereiro sobre a razão pela qual os jovens “aglomeram”. O texto, maravilhoso, explora bem o raciocínio por trás de quem tá saindo para se divertir na pandemia.

Você pode clicar no link para conferir, mas deixo aqui só uma frase que resume bem a situação, da secretária C.S., 29, que mora em Guaianases e trabalha na avenida Paulista, no centro da capital paulista. “Quer dizer que no busão cheio eu não vou pegar, mas no baile, sim?”

“Quer dizer que no busão cheio eu não vou pegar, mas no baile, sim?”

secretária C.S., 29 anos

Não é preciso andar muito pelas ruas de Curitiba para ver que não são só os jovens que estão desprezando as medidas de prevenção da Covid-19. Há alguns dias Curitiba viu milhares se espremerem num templo evangélico quase no Centro da cidade para um culto. Havia jovens lá? Sim, mas também adultos, idosos, crianças.

Não é um caso isolado. Igrejas estão entre as muitas instituições que pressionam o governo para evitar medidas mais drásticas contra elas. Isso apesar de não existir qualquer razão religiosa para insistir em cultos presenciais quando é perfeitamente possível atender as necessidades espirituais do rebanho de outras maneiras.

Mesmo na lista de atividades essenciais sancionada pela prefeitura de Curitiba há pontos controversos. Estão lá, ao lado de venda de alimentos, farmácias, atendimento de saúde, as concessionárias de veículos e a venda de materiais de construção. E o decreto vigente agora é o mais restritivo já publicado desde o início da pandemia.

Em versões anteriores, a bandeira laranja curitibana permitiu a abertura de salões de beleza, academias de ginástica, entre outras atividades com pouco ou nenhum distanciamento social, alto risco de contaminação e poucos argumentos que justifiquem sua presença entre os serviços “essenciais”.

E os jovens aderem menos aos protocolos de prevenção? Contaminam mais? Não sabemos. Não sabemos porque a Prefeitura de Curitiba, muito embora a secretária municipal de Saúde, Marcia Huçulak insista em acusar jovens de serem vetores, se recusa a divulgar informações importantes sobre a pandemia na cidade.

Nós não sabemos, por exemplo, o resultado das pesquisas sobre contaminação por Covid-19 no transporte coletivo (mas a prefeitura insiste, sem mostrar dados que o risco não existe). A prefeitura também se recusa a divulgar resultado de inspeções da Vigilância Sanitária, nem os dados sobre surtos pontuais da doença em locais de trabalho, escolas, etc.

Ao mesmo tempo, o prefeito Rafael Greca, cobra o uso da máscara e o distanciamento. Mas ele mesmo esteve em um evento público com sua esposa no dia que soube ter estado com uma pessoa contaminada. Também promoveu aglomeração para poder garantir um evento midiático no início da vacinação de Covid-19.

Será que o jovem não é crucificado por ser, na realidade, um alvo fácil? Eles não estão escondidos. Quem não viu os inúmeros vídeos dos bares lotados no Batel em Curitiba? A prefeitura não sabia? Só na última sexta-feira, 26, a Guarda Municipal dispersou uma multidão que bebia na rua, mas e nas três semanas anteriores?

E os proprietários desses locais? Os donos de perfis no Instagram que organizam festas abertamente? Cadê a grande operação policial para combater esse tipo de ação?

O jovem que sai para beber oferece um cardápio rico para o julgamento moral. Ele bebe, beija, faz sexo. Que horror, não é mesmo? Mas o jovem também é, vejam, jovem, inexperiente, imaturo, tolo.

E o senhor adulto ou idoso que anda sem máscara? Ou usa a máscara, mas com o nariz para fora, ou pendurada no queixo? A mãe que força a escola a jogar o protocolo sanitário pela janela ou que manda a criança pra aula mesmo com sintomas? A avó que manda fake news sobre vacina chinesa no whatsapp?

Não seriam esses mais maduros, inteligentes, informados, capazes de tomar melhor decisões? Mais ainda: nestes bares, restaurantes e festas lotados, quantos não são justamente adultos, profissionais formados, já distantes do que podemos chamar de “jovem”?

Isso sem falar no presidente da república, que é um show de horrores ambulante, disseminando mentiras e preconceitos numa velocidade digna de grande prêmio de fórmula 1 (ao mesmo tempo que nada faz para comprar vacinas e conter o avanço da doença no país).

Não se trata de passar pano para quem arrisca se contaminar e contaminar os outros. Óbvio que na situação atual querer ir “pra balada” é de uma frivolidade imensa, uma imbecilidade absurda. Mas é bom também saber quando estamos sendo manipulados a olhar para um lado para que o mágico tire o coelho da cartola do outro.

O jovem que é irresponsável, que toma decisões ruins precisa ser responsabilizado. Mas não é só dele a culpa pelas UTIs cheias. Esse papel de vilão tem uma fila considerável de pretendentes.

Não vamos esquecer às vezes o vilão do primeiro filme só serve mesmo para sermos apresentados aos personagens. Mas é só do segundo capítulo em diante que o verdadeiro mal se mostra em todas as suas cores.

Sobre o/a autor/a

7 comentários em “Que culpa cabe aos jovens na tragédia que vivemos?”

  1. No início da pandemia,havia uma campanha para isolar o chamado “grupo de risco “,quase dando uma carta branca para a moçada.Agora o “grupo de risco “são todos os grupos!

  2. jose gerbandt junior

    Mas a culpa existe sim!!! o governo vai aumentar o numero de onibus e essas coisas. nao vai.
    adianta culpar o governo, adianta, mas vai mudar… nao!

    agora esses jovens do caralho saindo é a unica coisa totalmente desnecessaria e fácil de mudar.
    reflexao tosca

  3. Cara Rosiane,

    Sua reflexão é interessante e pertinente.
    O conceito de “vilão” enquanto elemento narrativo ajuda a entender o jogo de empurra-empurra e os dribles que a prefeitura e a secretaria de saúde fazem desde o início da pandemia.

    Chamar os adultos à responsabilidade é também urgente. A propósito, tenho acompanhado estarrecido as trocas de mensagens numa “lista de mães” (WhatsApp) de uma importante escola privada de Curitiba: mães indignadas exigindo que se cumpra o decreto que determina a educação ser atividade essencial. É desolador testemunhar mães e pais clamando pela manutenção de atividades presenciais nas escolas frequentadas por seus próprios filhos e filhas, justamente nos dias em que até as TVs locais transmitem matérias chocantes desnudando o estado de calamidade e o caos em que a cidade e o estado se encontram. Curitiba, a nova Milão, um ano depois.

    Para além do bem e do mal, do bom e do mau – que remetem a aspectos individuais e da vida privada – existe um espaço que é público e, no caso da pandemia, é aí que está o busílis: somente os governos é que detêm meios para controlar, por exemplo, as aglomerações de pessoas. Enquanto não houver vacina para todos, a única maneira de conter a pandemia é reduzir (drasticamente) os contatos físicos na comunidade. Ponto. A prefeitura de Curitiba optou por não o fazer, mesmo com toda a informação disponível. Ônibus lotados, academias de ginástica, “Natal de Luz”, cultos religiosos, concessionárias de veículos… Ademais, em momento algum a prefeitura realizou campanhas de conscientização verdadeiramente eficientes – e tem sido pródiga em dar péssimos exemplos (quantas vezes, na campanha eleitoral, o prefeito apareceu sem máscara?). Sem contar as frequentes mensagens e falas induzindo as pessoas a acreditar que, em Curitiba, as coisas seriam diferentes, que “estariam melhorando”, inclusive, explorando e expandindo a lenda de que a cidade seria ungida. Greca se alimenta da lenda. E alimenta a lenda. Wishful thinking.

    Sim, os jovens e as “pessoas” são irresponsáveis, porém, a magnitude dos danos provocados pelo prefeito irresponsável pode ser, como estamos a observar, catastrófica.

    Toda a articulação em torno da volta às aulas presenciais se deu num contexto que era objetivamente desfavorável (e muito arriscado): a prefeitura sabia disso – e decidiu apostar. Como sói acontecer na terra dos pinheirais sagrados, a propaganda comandou o processo, enquanto os “protocolos” eram apresentados feito fossem as tábuas da lei. Qualquer pessoa minimamente formada e com acesso aos dados (de casos e mortes) e um editor de planilhas sabia que os riscos eram muito grandes. O prefeito apostou e dobrou a aposta. Câmara Municipal e famílias curitibanas seguiram o mestre.

    Um prefeito simplesmente não pode apostar vidas. Não pode. Curitibanos ilustrados sabem ler, direto no original, as notícias vindas da Nova Zelândia e sua presidenta, que comanda o pequeno país a dar exemplo para o mundo; exemplo da importância de as autoridades assumirem a liderança. A propósito, a informação cientificamente embasada está na Nature, The Lancet, NEJM… e está presente no New York Times, no El País, na BBC, no Le Monde… e no Plural.

    Não se trata aqui de decretar quem é o “culpado”. Trata-se de compreender quem são os verdadeiros responsáveis por termos chegado a este ponto.

    Não é por acaso que Greca (e Ratinho) insista no discurso da “não-política”. Na campanha de 2020, declarou:

    “Eu não quero que ninguém padeça por falta de atendimento, que ninguém morra sem socorro. Não pode haver discurso político num momento de agonia e de aflição” e emendou que seria candidato porque

    “depois de recuperar a cidade da má administração que me antecedeu, quero recuperar Curitiba da pandemia”.

    E a pérola das pérolas:

    “Nos preparamos para o pior e colhemos o melhor que nos podia acontecer”.

    (https://www.plural.jor.br/colunas/caixa-zero/greca-diz-que-nao-vai-ser-herodes-e-mantem-escolas-fechadas/)

    Greca (e Ratinho), em última instância, são representações locais de uma “lógica” nacional manifestada pelo presidente Bolsonaro. Talvez esteja aí a explicação das explicações.

    Consultando minha bola de cristal, notei que, em Curitiba, estamos a poucos dias de (re)iniciar os “preparativos para a volta às aulas presenciais”, porque, “segundo pesquisas… as crianças são as maiores prejudicadas…” e “o pior já passou” e “os protocolos Padrão Curitiba com capricho”…

    Voa, nau capitânia! Voa!

  4. Juarez Varallo Pont

    A Rosiane escreveu um primor de texto que leva a uma profunda reflexão. Ela está certa em pontuar que não apenas os jovens devem ser responsabilizados pela propagação (ascendente) do Coronavirus-19, em particular quando o presidente da República faz apologia contra o uso de máscara e não toma as providências necessárias para um efetivo e engajado combate à pandemia. Mas torná-los apenas vítimas desse processo de irresponsabilidades me parece um estímulo ao descaso, à continuidade de posturas do tipo “sou jovem, e se pegar não vai dar nada”. Afinal essa é a postura do mandatário maior da Nação, para quem essa “gripezinha” não o afetará, dado seu passado de “atleta”. E assim vamos, incertos, inseguros e procurando vilões e descontituindo outros que são tão vilões quanto.

  5. Apesar de concordar com a péssima atuação dos governos,municipal e estadual,confusos e ineficientes,mas afirmar que estão “jogando a culpa nos jovens “, é no mínimo uma interpretação exagerada,ou desonesta.Nunca vi nenhuma declaração “culpando “os jovens .Enfim estão perdoados pelo seu erro?quanto a comparação feita com “busão “cheio é sem sentido.

  6. Excelente reflexão. Vivemos tempos em que é comum encontrar alvos fáceis para desviar a atenção, em todos os níveis. Culpar os jovens é apenas mais um deles.

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