Para prefeito de Curitiba, ônibus cheio não transmite coronavírus, mas baladas e bares, fechados desde abril, sim

Em nenhum momento a prefeitura, ou o governo, se dispuseram a conversar e oferecer alternativas para a sobrevivência do segmento que gera tantos empregos e impostos para cidade

Em uma live recente com jornalista João Ribeiro, de Ponta Grossa, o prefeito de Curitiba, em um clima muito agradável de bate-papo com um amigo afirma: “Talvez o ônibus não seja um fator de infecção, a pior infecção é a que a acontece em casa, é o piá e a menina que vai na balada, fica a noite inteira no mesmo ambiente e vai beijar a vovó, a mamãe, transmitindo o vírus no ambiente fechado”.

Causa espanto e um bom tanto de revolta a fala do prefeito. Desde 15 de abril nenhuma balada de Curitiba pode funcionar por decreto, muito provavelmente o primeiro segmento a fechar e o último que poderá voltar. Se houve “balada” em Curitiba durante esses 5 meses, foi festa clandestina. E é aí que fica a pergunta: e a fiscalização onde estava?

As principais casas noturnas de Curitiba estão fechadas nos últimos 5 meses. Em nenhum momento a prefeitura, ou o governo, se dispuseram a conversar e oferecer alternativas para a sobrevivência do segmento que gera tantos empregos e impostos para cidade. Além de estarem em completo risco de falir, ainda acabam sendo usados de bode expiatório para a própria ineficiência da cidade. No meu artigo anterior aqui no Plural, falei um pouco sobre como essas decisões da pandemia também esbarram no conservadorismo e nessa fala do prefeito, fica ainda mais evidente. Ônibus cheio não transmite Covid, as baladas que estão fechadas por decreto desde abril é que sim. Isso na visão do prefeito.

Teve festa clandestina na cidade? Sim. Teve loja que fez aglomeração? Sim. Teve igreja que amontoou fiel? Sim. Teve parque que ficou cheio no final de semana? Sim. Teve bar que abriu e fez aglomeração? Sim. Em todos esses casos, onde estava a fiscalização? Qual foi o plano de ação? O plano é confiar que 2 milhões de habitantes e quase 200 mil CNPJs vão seguir todas as regras e quem descumpre segue impune. É esse o plano?

Como uma das articuladoras do “Fechados pela Vida”, um movimento de 200 pequenos comércios que pedem desde abril para que houvesse lockdown, mais ajuda econômica, mais fiscalização na cidade e, principalmente, um órgão que atuasse no momento da ocorrência. Em todas as denúncias de aglomerações que fiz, liguei para o número da Polícia Militar e da Guarda Municipal. Todas as vezes recebi a mesma resposta: “não podemos fazer nada, não tem proibição, é só orientação”. Restava então ligar para o 156. Em todas as denúncias a resposta veio 30 dias depois. Trinta dias depois! Por óbvio que aquela situação que foi denunciada poderia não estar mais acontecendo. E se tivesse ainda, eram 30 dias de contaminação até a fiscalização decidir fazer algo.

Quando ainda estávamos na bandeira laranja, havia proibição de comércios e mercados abrirem no domingo para qualquer atividade que não fosse para delivery. Eu passei por uma sorveteria em um domingo e vi uma fila de 15 ou 20 pessoas dentro, sem distância e consumindo no local. Peguei o telefone e mais uma vez fui ligar:

– Oi, então, tem uma sorveteria aqui que está aberta em desacordo com o decreto, têm pessoas dentro, aglomeradas. – Aqui eu fazendo a denúncia de número “perdi as contas”.

– Mas a senhora sabe que pode ter delivery, né? – A guarda municipal.

– Sim, eu sei, por isso eu estou ligando. As pessoas estão dentro do local consumindo e eu passei e vi. – Insistindo muito.

– Mas elas estão lá dentro mesmo? Você viu? – A guarda querendo muito acolher a denúncia.

– Sim, eu vi. – Já perdendo a paciência.

– A senhora está na frente? Está vendo pessoas dentro? – Ouvindo a guarda e pensando que ela só podia estar de sacanagem comigo.

– SIM EU ESTOU VENDO E ESTOU NA FRENTE – Falando calma, mas mentalmente gritando.

– Ah, então vamos mandar uma viatura.

Um amigo que mora na frente da sorveteria contou que nunca nem viu a cor da viatura.

Desde abril denunciar locais é assim, tem de ajoelhar no milho e rezar 30 ave-marias para Nossa Senhora da Luz dos Pinhais para ver se algum fiscal faz algo. Causa uma certa pequena grande revolta desses locais como bares e baladas, os mais conhecidos da cidade, que estão 5 meses fechados, vendo a fiscalização ser praticamente inócua, aguentar ainda esse tipo de fala do prefeito. “Ai, mas não foi isso que o prefeito quis dizer, ele estava falando de balada em casa”. Que seja, por que não se fiscalizou? Por que não teve campanha ensinando como denunciar? Teve uma festa clandestina que aconteceu em um estabelecimento comercial em pleno Batel, várias pessoas compartilharam nas mídias sociais. Novamente pergunto: onde estava a fiscalização que não interrompeu a festa?

Algo que sempre percebi nessas ligações que fiz para denunciar é que não havia treinamento de como orientar os denunciantes, de como agir com as denúncias, o que fazer se várias pessoas resolvem se aglomerar no Parque Barigui. Nunca tive a sensação de que havia um protocolo de procedimentos.

Como eu estou pessoalmente envolvida no movimento “Fechados pela Vida”, o problema da falta de fiscalização tanto nos ambientes comerciais como nos públicos, como parque e ônibus, sempre foi uma grande pauta nossa. Fiz 2 pedidos de acesso à informação. Não houve um aumento sequer de fiscal nos pedidos feitos com 1 mês de diferença no auge da pandemia. Contamos com 100 fiscais até a última informação que obtive e pelo que pesquisei, os fiscais atuam em duplas. Ou seja: 50 duplas para 153 mil CNPJs. Tinha como dar certo isso? Aqui você pode ter acesso aos pedidos de informação, um de maio e outro de junho.

O prefeito disse na live que os negócios aderiram à hashtag #fechatudo, tentando defender que ele nunca mandou fechar nada, mas através do bom senso das pessoas, conseguiu equilibrar saúde e economia. Com um lockdown severo no início, poderíamos falar em retomada econômica com as pessoas podendo sair de casa e se sentindo seguras. Nosso “lockdown”, ou melhor, nossa quarentena restrita adotada no dia 1.º de julho, acabou exatamente no pico da doença. Essas decisões da prefeitura e do governo fizeram com que, ao invés de termos 2 meses completamente fechados e ruins economicamente, tenhamos agora 5, 6, sabe-se lá quantos meses péssimos de isolamento meia-boca. É a quarentena sem fim, ótima para os negócios e para reduzir a contaminação pelo vírus.

Podíamos ter aprendido com outros países. A Itália, com sua campanha “Milão não para”, virou um pedido de desculpas de Giuseppe “Beppe”, prefeito da cidade. A Suécia, do modelo citado pelo prefeito de Curitiba como exemplo, também pediu suas desculpas e disse que não se preparou como devia para pandemia. Já a Nova Zelândia, exemplo de verdade, parou com medidas severas e restritivas bem cedo, pode voltar feliz e com festa. Hoje enfrenta alguns casos novamente, mas, ainda assim, tudo sob controle. Por aqui não há controle, não há fiscalização, não há monitoramento dos doentes, mas a culpa é do jovem e da balada fechada. Não da cidade que nunca parou.

Em duas situações liguei para o número do Coronavírus da prefeitura pedindo informações. Uma amiga estava apresentando sintomas de gripe, tosse, febre e estava apavorada de estar com Covid. Ligamos para o (41) 3350-9000, número de informações destinado ao coronavírus. Recebemos um ótimo atendimento, fomos bem orientadas, mas ninguém anotou o registro dela para um eventual retorno para ver se não era coronavírus mesmo. Na minha cabeça, inocente talvez, deveria ter sido registrado, afinal, era uma pessoa suspeita. Não foi.

Se foi o bom senso de comércios, como os “Fechados pela Vida”, do #fechatudo, como diz o prefeito, que ajudaram a cidade, por que nunca fomos recebidos mesmo com um abaixo-assinado com 15 mil assinaturas? Por que aqueles da hasthtag abre tudo foram? O discurso político é sempre uma transferência de culpa. “Fizemos tudo… mas os jovens que vão nas baladas.” Volto a dizer, se era balada e estava aberta, era clandestina. Os parques cheios e os ônibus lotados nada têm a ver com os picos de contaminação na cidade?

A responsabilidade de tudo é sempre do cidadão que “não respeita”, do “comércio que não respeita”, nunca da prefeitura que não teve pulso para agir, para decretar um fechamento de verdade, para punir os responsáveis. Sei de locais na cidade que fazem aglomeração desde abril. Denunciei. Todos estão até agora com alvarás e continuam aglomerando “seguindo todos os protocolos”.

1 horinha de buzinaço na frente da casa do prefeito e pronto, um segmento foi ouvido e liberado. Dá para dizer que é uma decisão técnica?

Na mesma fala, o prefeito ainda culpa a população que não respeita a capacidade de circulação do ônibus de apenas 50%. Parar de trabalhar e de usar transporte público é um privilégio. Com R$ 600 por mês ninguém vai parar de trabalhar. Sem empréstimos com juros baixos e isenções de impostos, nenhuma empresa vai ficar fechada 5 meses. Quem está saindo e se arriscando para pegar um transporte público não faz por escolha, faz porque precisa. É aqui que o equilíbrio entre saúde e economia deveria estar. Para que as pessoas usassem menos o transporte público, para que elas saíssem menos de casa para trabalhar, elas precisariam estar economicamente seguras. Quem é que vai ficar em casa 5 meses acumulando boleto vencido sem trabalhar? Ninguém quer sair de casa com o risco de ficar 40 dias numa UTI usando respirador, mas ninguém também quer passar fome. Políticas públicas poderiam e deveriam equacionar isso.

Garantir a sobrevivência das pessoas, dos trabalhadores, das pequenas empresas, para que elas possam não trabalhar, isso, o poder público sequer cogita. É uma conta grande para pagar. É melhor transferir a responsabilidade.

E não é só dinheiro que poderia resolver esses problemas, o caso mesmo das baladas, será que não havia uma alternativa para transformar esses lugares temporariamente para um estabelecimento essencial e que pudesse gerar renda? Não faltou só dinheiro, faltou também parceria para ouvir, propor, resolver.

Por outro lado, o espanto também fica na afirmação sobre o transporte público ser totalmente seguro. O prefeito afirma, na entrevista, que o resultado de uma determinada pesquisa feita pela própria prefeitura, mostrou que somente 70 pessoas foram infectadas andando nos coletivos. Mas qual é o universo de pessoas que foram pesquisadas e qual foi a amostra da pesquisa? Quem realizou a pesquisa? Se for, digamos, 70 pessoas em uma amostra de 100 pessoas analisadas, bem, são 70% dos casos. Estou usando aqui números hipotéticos, mas ele não cita os dados da pesquisa, nem o período e nem os responsáveis.

Uma breve pausa aqui para explicar dois termos que vêm da estatística, população ou universo estatístico formam o conjunto de dados com características em comum que compõem aquele fenômeno a ser estudado. Se queremos estudar todas as pessoas que foram infectadas por Covid no Paraná, por exemplo, nosso universo é de 120 mil pessoas aproximadamente. Ou seja, o número total oficialmente computado de pessoas que se infectaram com o vírus. Investigar 120 mil pessoas é demorado e caro, por isso a estatística usa a ferramenta da amostra, que é uma parcela desse universo que seja representativa do todo para estudar e conseguir entender o comportamento dessa população estudada. Só que raramente uma população é homogênea, ou seja, feita de elementos iguais, por isso a amostra também precisa prever diferenças entre os vários elementos estudados. Para calcular uma amostragem que seja representativa da diversidade do universo estudado, há uma série de cálculos e análises que precisam ser feitas. Uma amostra de 120 mil casos é cerca de 1.058 pessoas, com uma margem de confiança de 95% e um erro amostral de 3%, mas se eu pegar esse número e pesquisar somente pessoas no Batel, em Curitiba, não vai ser uma pesquisa muito útil ou relevante para mostrar a realidade da pandemia.

Principalmente nesse momento de cCoronavírus, é muito importante ficar atento ao discurso que parece científico e a pesquisa que é realmente científica. Como pesquisadora, apesar da minha área ser humanas, já vi todo tipo de bizarrice ser chamada de pesquisa. Pesquisa com uma amostra de 10 pessoas para um universo de 2 milhões, formulário do Google postado de qualquer jeito em mídia social ou grupos de WhatsApp, entrevista com 1 pessoa ser extrapolada para um fenômeno que é gigantesco. A pesquisa científica, por excelência, tem rigor, ou seja, obedece a parâmetros técnicos do seu campo, tem metodologia para definir o que vai ser o objeto da pesquisa. Objeto é o foco, o tema a ser estudado, e como esses indivíduos, elementos, ocorrências vão ser escolhidos. O processo de amostragem da estatística é só uma possibilidade, existem várias outras metodologias, e, por fim, precisa ser revisada por pares. Tem de ser analisada em uma banca ou congresso, submetida às revistas acadêmicas que são graduadas de acordo com seu prestígio e qualidade da comissão técnica que avalia.

Então, quando alguém fala “teve uma pesquisa X que comprovou Y”, temos que nos acostumar a fazer as perguntas necessárias: feita onde? Quantas pessoas? Qual metodologia? Foi publicado onde? Qual pesquisador, instituto de pesquisa ou universidade estão por trás? Buscando a tal pesquisa que atesta a segurança do transporte, achei um resultado no Google, publicado por uma associação de empresas de transporte. Gostaria muito de ter acesso aos dados da pesquisa citada pelo prefeito.

Se for para escolher uma pesquisa, fico com o Boletim 10 de Covid-19 e políticas públicas, realizado pelo consórcio formado por 40 pesquisadores, de diferentes instituições, como USP, FGV, Albert Eistein, entre outras, que afirmam que as medidas de redução da frota de ônibus adotada pela maioria das cidades foram prejudiciais, especialmente para população mais pobre e vulnerável. Quanto menor a renda, em média, maior o tamanho do deslocamento do trabalhador. A pesquisa sugere que em linhas que atendem regiões periféricas, ao invés de terem rotas reduzidas, deveriam ter rotas aumentadas, para que se pudesse de fato cumprir o distanciamento de 1m no mínimo por passageiro. Mas a decisão da prefeitura foi na contramão, as frotas operaram com horário de sábado, reduzido, durante um bom período. Além disso, a pesquisa também cita que o ideal é que os ônibus fossem higienizados a cada viagem, porém a desinfecção tem sido feita durante à noite, somente no final do turno. E ainda assim, enfrentam dificuldades, como pode ser visto nessa reportagem do Plural que fala sobre a escassez de mão de obra para aplicar o produto de desinfecção.

Mas tudo é culpa da balada que está fechada há 5 meses, amargando dívidas e sem nenhuma possibilidade de sobrevivência oferecida pelo poder público. Não do transporte público que recebeu acesso a R$ 200 milhões de subsídio durante a pandemia, sem nenhuma contrapartida pedida pela prefeitura. Não da falta de fiscalização nas aglomerações clandestinas.

Íntegra da live na qual as falas citadas no texto acima foram feitas https://www.facebook.com/watch/live/?v=2768297566786520&ref=external

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