Podcast – O passado em aberto

O passado é afetado pela força da memória, que transforma o que vivemos, diz Daniel Medeiros

O escritor Milan Kundera lembra-nos de como o esquecimento pauta nossa existência no mundo. Diz ele: quando alguém cita alguma coisa que dissemos numa conversa, nunca nos reconhecemos; nossas afirmações são na melhor hipótese brutalmente simplificadas, algumas vezes pervertidas e muitas vezes não correspondem a nada que já tenhamos dito ou pensado. Daí o autor tcheco tira uma reflexão: Não devemos nos espantar nem indignar: o homem é separado do seu passado por duas forças que entram em ação e imediatamente cooperam entre si: a força do esquecimento (que apaga) e a força da memória ( que transforma).

Como um homem de mais de 50 anos e como professor de História, essa reflexão me afeta fortemente. Afeta pela carga de verdade que percebo nela. O passado – meu passado e o passado de meu país – é como a matéria escura do universo: está em todo lugar mas não percebemos nada, quase nada. Por outro lado, o que digo sobre mim e sobre meu país, forçado pela linguagem que luta para ser compreendida pelos jovens, é um tanto diferente dos livros, que são também recortes dos acontecimentos cujos registros igualmente foram transformados pelo susto ou pela raiva, pela malícia ou pela melancolia.

Há um quê de dúvida em tudo o que chamamos de passado e nisso mora um perigo constante, como uma pressão no peito, uma dificuldade em aceitar, um tentação em deixar de dizer o que pode ser apenas uma miragem. Abrem-se clarões, desvãos, pontos cegos se multiplicam e falha-nos a convicção, a segurança. Os jovens miram inquietos e muitos, muitos, já desviam o olhar em busca de algo mais próximo, concreto e confiável.

Há , de fato, uma ficção em tudo o que acreditamos saber sobre o ocorrido.  O passado, visto assim, é como um caleidoscópio, cujos fatos são as pedrinhas coloridas dentro do cilindro de papelão. As histórias são contadas após um giro e depois de um movimento de mão, os fatos continuam lá, mas o que vemos? O que vemos?

Não é difícil partir dessa constatação sobre as limitações da nossa percepção e da nossa reflexão sobre os fatos passados para desaguar em um niilismo pentecostal: só importa a voz que vem de cima! O que é possível saber, Deus sabe, o que nos resta fazer é crer e esperar.

O risco da paralisia da descrença ou do frenesi da crença são igualmente desumanos. A reação implica o reconhecimento dessa dificuldade e, partindo dela, a busca por um solo seguro embaixo da areia solta. Não há um solo seguro em todo lugar e o movimento tectônico da vida altera as áreas de livre trânsito o tempo todo. Mas devemos continuar procurando, sem desistir de que coisas certas precisam ser ditas para os que chegam. E igualmente coisas certas precisam ser feitas, por mais que o certo seja sempre uma palavra áspera e quente na nossa boca.

Após tantos anos, não guardo ilusões sobre como tudo se passou: guardo uma frágil esperança de que ainda posso testemunhar algo; como professor, não tenho a pretensão de traçar o quadro dos acontecimentos como uma muralha inexpugnável, mas como uma cerca viva, que rego com diligência, cuidando que a raízes não morram, cortando os ramos secos, deixando os jovens brotos respirarem e terem espaço para crescer.

Como lembrou o historiador Carlo Ginzburg, “o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida. Os historiadores ( e de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama de nossos estar no mundo.

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