Ela foi estuprada pelos irmãos. E ajudou dezenas de mulheres a abortar

O Plural conta a história de uma mulher, criada em meio a estupros e violência, que se dedica a ajudar outras mulheres a abortar em Curitiba

Nascida no interior do Paraná, num município com apenas 12 mil habitantes, Rafaella* mudou-se para Curitiba em busca de oportunidades. Queria fazer faculdade. Foi na capital que teve contato, pela primeira vez, com o feminismo.

Em 2011, embora ainda no começo, o movimento feminista já reunia um número considerável de mulheres em Curitiba. Foi o tamanho dessa movimentação que despertou a curiosidade de Rafaella. Com um histórico de abusos sexuais dentro da própria família, foi natural sentir-se atraída por algo que discutia e debatia a questão. Um ano mais tarde, a moça vinda do interior se tornaria ativista.

O contato com a temática do aborto, no entanto, não nasceu desse encontro com o feminismo. Essa é uma relação que a jovem carrega consigo desde o útero: a menina só nasceu por desejo do pai. Depois de três gestações, a mãe não queria uma quarta gravidez – não queria que ela tivesse nascido. O casal teve três filhos meninos: o primeiro morreu em um aborto espontâneo, no quinto mês gestacional. Depois vieram Lucas*, Davi* e, por insistência – e sonho antigo – do pai, Rafaella.

O fato sempre complicou a relação entre as duas. Quando brigavam, a mãe dizia que a menina só havia nascido por capricho do pai. Pequena, a filha não entendia o que aquilo significava para a mãe enquanto mulher – que ela não teve poder de decidir sobre o próprio corpo. Adulta, compreende que a mãe deveria ter tido o direito à escolha.


A arma do pai ficava pendurada na sala da casa da família. Rafaella cresceu com o objeto sempre ali, acima da altura de sua cabeça. Ao contemplar o armamento, o patriarca gostava de lembrar porque estava ali, ao alcance das mãos: se algum dia, algum homem ousasse tocar na menina, ele mesmo se encarregaria de matá-lo. A mãe sempre emendava um lamento, e pedia tento – se o marido matasse alguém, iria preso.

A pequena Rafaella acreditava cegamente nas promessas do pai: se ele afirmava que tiraria a vida de quem a tocasse, acabaria matando os próprios filhos, já que os dois irmãos da menina a violentaram ao longo de boa parte da infância. O sofrimento da mãe seria duplo, choraria pelos filhos assassinados, e pelo marido preso.

Os abusos começaram quando a caçula tinha apenas cinco anos de idade: além dos dois irmãos mais velhos, participavam também os primos, e alguns amigos das crianças. No primeiro episódio, os meninos despiram-na completamente, e fizeram o mesmo com um primo da mesma idade, obrigando-os a interagir.

Havia cinco, seis garotos tocando em seu corpo ao mesmo tempo, e um desejo imenso de não estar ali – mas essa era a condição que lhe impunham, para que pudesse brincar com os meninos, já que era a única menina entre eles. Os pais trabalhavam fora, e acabavam deixando os pequenos sempre sozinhos – era nessas circunstâncias que as violências sexuais tomavam forma.

Pequena, a menina não entendia o que aquilo significava para a mãe enquanto mulher – que ela não teve poder de decidir sobre o próprio corpo.

Até mesmo nas viagens para o sítio da avó, os estupros eram recorrentes. A pequena tomou, sozinha, as primeiras providências contra as violações: aos oito anos de idade, a menina evitava ficar em casa. Passava o dia todo fora, voltava às 22h. A bronca era inevitável, mas melhor do que aquilo que poderia acontecer na ausência dos pais.

O pânico ligado a banheiros foi um efeito das violências constantes. Por morar numa cidade quente, os banhos eram frequentes e aconteciam sem a assistência dos pais – terreno propício para a aproximação sexual dos irmãos. Em algum ponto ao longo dos anos de violação, ao abrir a porta para sair do banheiro, enrolada na toalha, o irmão empurrou-a para dentro toalete e a estuprou.

O episódio foi apagado da memória, ficou só o pavor: depois do acontecido, Rafaella ficava semanas sem lavar o próprio corpo. Entrava no recinto, ligava o chuveiro, molhava as mãos e a toalha. Despir-se era doloroso, não conseguia ficar nua. O banho só acontecia de fato quando as colegas da escola começavam a comentavar sobre cheiros estranhos.


Foi só por volta dos onze anos de idade que os abusos pararam, quando, pela primeira vez, conseguiu dizer não. Desgostoso, o irmão mais velho bateu-lhe, enforcou-a, o restante do acontecido é apenas um borrão. Logo após o episódio, a menina teve a primeira menstruação, o que ajudou a conter as violências sexuais. A violência física, por outro lado, se perpetuaria pela relação dos três.

O reconhecimento como vítima de violência sexual, no entanto, não foi imediato. A palavra “estupro” só foi dita em voz alta em uma sessão de psicoterapia anos mais tarde, aos 24 anos de idade. A possibilidade de uma tentativa de suicídio levou Rafaella à terapia.  

Na primeira sessão, foi só o despejo: uma série de incertezas e choros. Tinha dúvidas se havia mesmo sido abusada. Hoje, reavalia. Sabe que algumas situações da infância não passaram de uma exploração saudável, de descobertas. Exemplo disso são as lembranças com um primo: quando estava apenas com ele, brincando no banho, ambos se divertiam e exploravam seus corpos.

Aliás, ele é o único com quem ainda mantém contato – mais do que uma paixãozinha de criança, a afinidade intelectual que sempre existiu entre os dois pesa mais do que os abusos, dos quais o menino também era vítima, já que apenas obedecia aos primos mais velhos.

Com a terapia, passou também a entender a dimensão dos motivos que levaram ao seu silenciamento, e as formas sintomáticas com que tentava revelar o abuso: desenhos de órgãos sexuais e partes do corpo, predominância da cor preta. Olhos, muitos desenhos de olhos. Isolamento e dificuldades de manter um diário.


O primeiro pedido de socorro veio em 2012. Por mero acaso, alguém lhe perguntou sobre o contato de uma clínica. Na época, Rafaella já carregava consigo o sentimento da falta de escolha da mãe. Embora não acreditasse que conseguiria a informação facilmente, a jovem comprometeu-se a tentar consegui-la. O número de telefone, no entanto, veio sem maiores dificuldades.

O procedimento era simples: Rafaella conversaria com o médico, avisando que ele receberia uma ligação. Depois, bastava que a mulher pedisse por uma consulta de emergência, citando com quem havia conseguido o contato.

Um aborto cirúrgico pode custar entre R$ 3.000,00 e R$ 5.000,00. Poucas são as mulheres que optam por esse tipo de procedimento, em razão do custo dez vezes superior ao valor da medicação. De forma geral, a cirurgia torna-se a única alternativa segura após a 12a semana de gestação. Ainda assim, muitas mulheres assumem o risco de tentar interromper a gravidez com remédios após esse período.

Rafaella não conhecia a mulher que pediu por ajuda, mas acabou se oferecendo como apoio mesmo assim. Os pedidos quase sempre chegam dessa forma: alguém que conhece alguém que conhece alguém. Na maior parte das vezes, ela não conhece essas mulheres pessoalmente, apenas procura ajudá-las da forma que estiver ao seu alcance.

Com a terapia, passou também a entender a dimensão dos motivos que levaram ao seu silenciamento, e as formas sintomáticas com que tentava revelar o abuso: desenhos de órgãos sexuais e partes do corpo, predominância da cor preta.

Entre 2014 e 2015, oito mulheres passaram pela casa de Rafaella para interromper gestações, de até quatro semanas, com chá. A receita precisa ser ingerida em um jejum de oito horas. Se consumido ao longo do dia, um litro do chá poderia resultar na vinda do sangramento.

Abrir as portas de casa foi mais do que natural, o primeiro convite foi feito à amiga de uma conhecida, que não tinha lugar para tomar a mistura. A gravidez indesejada da jovem era um segredo. Dividindo o apartamento, Rafaella recebeu-a sob o pretexto de ser uma amiga que passaria o fim de semana ali – e assim fizeram.

Durante o processo, assistiram filmes, comeram pipoca e deram risadas como verdadeiras amigas. De certa forma, naquele momento difícil, de fato o eram. Depois vieram a dor e a febre, e com elas os cuidados de Rafaella: água e banho quente para aliviar as contrações, e vigília durante o sono para controlar a temperatura. Na segunda-feira, sentindo-se bem, a mulher agradeceu-lhe. Nunca mais conversaram.

Os anos se seguiram entre chás em casa, ­encaminhamentos aos médicos ou a quem tivesse medicação disponível – mesmo que para venda. Do envolvimento com tantas histórias, veio a vontade de ir além. Estava mais do que clara a importância de debater o assunto, alimentar-se – e deixar que os outros se alimentassem – de outras experiências e perspectivas. A Internet tornou-se o catalizador desse desejo.

O contato direto com o remédio veio mais tarde, na tentativa de ajudar uma mulher com onze semanas de gestação. Na época, o médico da clínica estava viajando e ficaria fora o mês todo. Era preciso encontrar outro caminho. Rafaella sabia que era possível usar remédios para interromper uma gravidez indesejada até a 12a semana, mas não conhecia o universo que se estendia por trás do método. Mesmo entre as feministas, não é possível falar sobre o assunto abertamente, usam-se códigos.

O socorro veio de uma ONG estrangeira, que já acompanhava os movimentos de Rafaella na internet há algum tempo. Depois dessa primeira ajuda, a proposta era que a jovem passasse a receber a medicação, trazida de fora. O sistema, colaborativo, funcionava assim: quem fizesse o pedido pelo site recebia o medicamento mediante uma contribuição, que garantia a distribuição gratuita para outras mulheres. Quem conseguia o contato direto de Rafaella, ou de outras distribuidoras da ONG, recebia a medicação de graça. Algumas chegavam a ajudar com o valor que tinham disponível, mesmo que conseguissem gratuitamente. 

Assim, com a casa sempre aberta e o telefone celular ligado 24 horas por dia, ao longo de quatro anos, foram mais de mil comprimidos recebidos de fora do país e distribuídos por todo o Brasil. Hoje, Rafaella não tem mais contato com a ONG, embora ainda receba pedidos de socorro. Com o passar do anos, nomes e rostos se confundem e se perdem na memória em meio a tantos pedidos de ajuda.


“Chorou, mas fazer o quê? Às vezes perde-se a infância.”

Há quase dez anos vivendo longe da família, passou metade desse tempo dedicando-se a falar e debater a violência contra a mulher. O abuso entre crianças tornou-se uma de suas bandeiras. Apesar disso, ainda luta para lidar com a experiência dentro da própria família.

Chegou a comprar um livro feminista, sobre como educar crianças, para presentear a cunhada e o irmão mais novo – pais de uma menina. As páginas contêm todos os seus desejos para a criação da sobrinha, e a vontade de evitar que o que lhe aconteceu se repita. Espera que o irmão leia. Na cabeça ecoa ainda uma das frases ditas por ele, quando tinha nove anos, durante os estupros: “Finge que eu tô te estuprando, mas finge que você tá gostando”.

Na mudança para a capital, trouxe todas as fotos da infância – não queria deixá-las para trás, na casa dos pais. Detestava olhar para elas: a família feliz ali estampada a enoja. Acabou perdendo os registros todos, foram-se em alguma das dezesseis mudanças de residência ao longo dos anos. Mesmo assim, insistiu. Já procurou por tudo, não encontrou. Chorou, mas fazer o quê? Às vezes perde-se a infância.


*O nome da entrevistada foi alterado para preservar a identidade dela.

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