“A classe médica também se dividiu” com as vacinas

Doutor em genética fala sobre imunização, negacionismo e fake news entre os médicos

O número de profissionais da Saúde que se recusaram a tomar vacina contra o coronavírus em Curitiba não foi repassado pela Prefeitura. Mas muitos ainda surpreendem ao negar o efeito da imunização contra a Covid-19, inclusive entre os médicos. “A classe médica também se dividiu, foi um reflexo da sociedade. Eu imaginava que com a classe médica fosse diferente, mas não foi”, percebe o médico Salmo Raskin, doutor em Genética e membro da Sociedade Brasileira de Genética Clínica.

Professor na PUC/PR e na Faculdade Evangélica, médico geneticista dos Hospitais Evangélico Mackenzie, Nossa Senhora das Graças e Pequeno Príncipe, Raskin é referência na área e fala com propriedade sobre vacinas. “Mesmo tendo um número pequeno de médicos contrário às vacinas, para mim foi surpreendente. Nunca imaginei que ouviria opiniões contrárias às vacinas de médicos”, diz ele.

Além dos negacionistas, houve ainda os que propagaram fake news. “Teve um número minúsculo de médicos que tiveram um papel inaceitável, que divulgaram informações erradas a respeito das vacinas. Essas informações são passadas para a população inteira, viralizadas. Eu mesmo assisti médicos dizendo que as reações adversas da Coronavac iam afetar 6% da população brasileira e que, portanto, se todo o Brasil fosse vacinado com a Coronavac, cerca de 12 milhões de pessoas precisariam ser internadas e isto esgotaria o sistema de Saúde só pelos efeitos adversos severos da vacina. Uma informação completamente errada e que fez certamente pessoas desistirem de receber a vacina. Essa informação vir de um leigo, é ruim. Mas vir de um médico, é nada menos do que inaceitável.”

Confira abaixo a entrevista completa com o doutor Salmo Raskin:

Plural: O que leva médicos a repassarem informações erradas sobre a vacina contra Covid-19?

SR: Acho difícil que um médico que tenha a formação completa acredite nessas fake news. Posso concluir que alguns médicos viram uma oportunidade de divulgação própria dos seus nomes, e você não fica famoso dizendo que vacinas protegem as pessoas, o que é óbvio. Para mim, o principal motivo é esse, de que um número mínimo de profissionais de Saúde acabou indo por esse caminho, incentivados no momento que viram que boa parte da população brasileira acreditava naquelas informações.

Os médicos deveriam ser responsabilizados por isso?

É uma questão delicada porque, do meu conhecimento, o Conselho Federal de Medicina, que é o único que poderia responsabilizá-los por isso, preferiu tomar uma atitude neutra em toda a pandemia em relação aos médicos. Certamente eles devem ter os seus motivos para isso, mas na minha opinião, e na opinião de muitos colegas, essa atitude neutra acabou gerando insatisfação generalizada. Se é que existem dois lados dessa moeda, os dois lados ficaram insatisfeitos com o Conselho. Respeito muito o CFM, uma instituição muito importante para nós, mas esse posicionamento de neutralidade eu não concordo. 

E em relação a alguns médicos indicando remédios de tratamento precoce para Covid-19, que não foram cientificamente comprovados?

Uma das piores coisas que aconteceu nesta pandemia é que a ciência não conseguiu desenvolver medicamentos para tratar a Covid-19 na suas fases iniciais. E nem nas suas fases mais prolongadas. Não existem tratamentos específicos até hoje. A maioria dos tratamentos são já tradicionais dentro da Medicina, como por exemplo os corticóides e os anticoagulantes, UTIs e respiradores. Este foi um aspecto muito ruim em que não foi possível desenvolver um medicamento para uma doença terrível e gravíssima como a Covid-19. Isso levou a uma série de tentativas infrutíferas com medicamentos que não havia evidência de que pudessem trazer este retorno. Entendo novamente que faltou uma orientação do CFM, que preferiu deixar dentro da autonomia médica esses tratamentos. Uma atitude pública de incentivar medicamentos sem evidência científica, eu acho muito temerário. 

Há muitas pessoas querendo se vacinar, enquanto alguns médicos se recusam a tomar a vacina. Dá para aceitar isso?

Meu pensamento é de que a população brasileira acredita na vacina, quer a vacina, sabe que a vacina é segura e sabe que a vacina pode salvar a vida dela e de seus familiares. Eu não tenho dúvida de que a enorme maioria da população brasileira pensa assim. Claro que entendo que uma parcela não pensa assim. Não acho que as pessoas deveriam ser obrigadas a se vacinar. Mas sei que 85% das pessoas, como as pesquisas demonstram, vai se vacinar e este é o número que a gente precisa para ter o efeito coletivo da vacina, além do efeito individual. 

Salmo Raskin atua em Curitiba. Foto: Arquivo Pessoal

RNA e as vacinas

E aquela história do presidente da República de que podemos “virar jacarés” ao tomar a vacina que utiliza o RNA mensageiro, e poderia modificar nosso DNA? Você pode explicar sobre este imunizante, que ainda não chegou no Brasil?

Elas foram talvez a melhor coisa que aconteceu em toda essa pandemia, desde o início até agora. Elas passaram a ser produzidas imediatamente após a revelação da sequência genética do vírus, um dia depois. Elas já vinham sendo produzidas para outros vírus muito parecidos, como o SARS-CoV-1 e o MERS. Quando surgiu a sequência genética do SARS-CoV-2, não foi difícil fazer uma adaptação daquilo que já vinha sendo feito há anos e começar a desenvolver a vacina de RNA mensageiro para o SARS-CoV-2. Por isso, essas vacinas foram as duas primeiras a ultrapassarem todas as fases de pesquisa. Mais do que isso, além delas serem as primeiras, elas são as duas vacinas que têm a maior eficácia.

Por exemplo, não há uma única morte confirmada com relação a uma das vacinas de RNA. Na verdade, não há nenhuma morte confirmada em relação a nenhuma vacina, mas estamos falando sobre as vacinas de RNA, versus milhões de mortes confirmadas pelo vírus. Nenhuma dessas duas vacinas interferem no material genético. (…) É uma grande revolução, tão grande que nos meios científicos todos falam que provavelmente as próximas vacinas, para sempre no mundo, serão desenvolvidas com essa tecnologia de RNA mensageiro, por ser rápida, segura e altamente eficaz. 

Por que ela é mais rápida?

Porque para desenvolver a vacina você praticamente não precisa mexer com o vírus. Toda vez que você precisar mexer com o vírus, isso exige laboratórios de alta segurança, profissionais extremamente qualificados e isso tudo faz com que o processo seja demorado. Aqui não; um laboratório que desenvolve uma vacina dessa, basicamente não tem o vírus, ele só tem uma sequência sintética desse RNA mensageiro do vírus, que pode ser sintetizada no mesmo dia em que os cientistas souberem qual é a sequência do código genético do vírus, (…) porque essa é a única informação que eles precisavam para iniciar o desenvolvimento. É por isso que ela foi desenvolvida rapidamente. 

Por que ainda existe dificuldade para que se receba esta vacina de RNA no Brasil? É uma questão política?

Acredito que nós não tivemos a oportunidade de receber essa vacina por aqui porque nosso governo não se planejou adequadamente para fazer a oferta de compra dessas vacinas no momento certo, que era lá atrás, cerca de seis meses, quando todos os outros governos fizeram. Agora nem que a gente queira a vacina, não tem a quantidade que a gente queria e que foi ofertada para nós lá atrás. Eu acho que se nós tivéssemos essa vacina aqui e ela estivesse fazendo o efeito que ela está fazendo em países como Israel, onde mais da metade da população está vacinada somente com essas vacinas de RNA – e que está havendo uma queda impressionante de número de mortes e casos graves por Covid -, eu tenho certeza que a população brasileira também iria aceitar.

A logística de distribuição da vacina seria um obstáculo no Brasil?

Sim, e não tem a ver com segurança. O problema de logística é maior com a vacina da Pfizer, porque ela é uma das únicas, pelo menos dessas que estamos vendo agora, que precisa ser mantida em uma temperatura muito baixa, condicionada em torno de -70°C. Por isso, tem que ter freezers que congelem a vacina nesta temperatura. Isso é realmente um problema de logística. Num país como o Brasil, poderia ser um problema de distribuição para cidades menores que não tivessem esses ultrafreezers. Mas boa parte da população brasileira vive nas grandes capitais, onde existem esses freezers. Cidades como São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, teriam capacidade para aplicar essa vacina.

O obstáculo da informação sobre as vacinas é maior do que o logístico por aqui?

Não tenho dúvida que o maior obstáculo é a informação. O logístico só depende dos nossos gestores e a informação depende do acesso a uma informação verdadeira. No Brasil, tivemos muitos problemas relacionados com fake news. E no momento em que vivemos uma pandemia, você ter esse grau de fake news que aconteceu, foi surpreendente e muito triste. Certamente pessoas vão deixar de ser vacinadas porque vão optar por não ser vacinadas; vão se infectar pelo coronavírus e algumas delas vão morrer por causa das fake news. Se tivessem sido corretamente informadas, essas pessoas não iriam morrer. 

Colaborou: Matheus Koga

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4 comentários em ““A classe médica também se dividiu” com as vacinas”

  1. A entrevistadora foi tendenciosa e tentou conduzir a entrevista ideologicamente. O tratamento precoce tem se mostrado importante onde foi aplicado com correção e o ato médico não depende felizmente de comprovações científicas, mais do que isso, da experiência e evidência clínicas.

  2. Creio q as responsbilidades medicas, sem querer me meter na condutaterapêutica de ninguem tem que ser fiscalizadas sim pelos seus conselhos. Se alguem do meu entorno morrer por falta de vacina por exemplo, processo o estado.

  3. Excelente entrevista e ótimas respostas. Porém, considero que médicos que receitam o tal tratamento precoce com medicamentos comprovadamente ineficazes para covid 19, estão praticando charlatanismo. São criminosos.

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