Perfil: Gustavo Filippe de Souza, o jovem músico gay da Orquestra Sinfônica do Paraná

Contrabaixista paulistano escuta choro para relaxar e fala abertamente sobre sua orientação sexual, pois espera que ela seja encarada com naturalidade

Músico da Orquestra Sinfônica do Paraná, Gustavo Filippe de Souza nasceu e cresceu em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, mas hoje se considera “um curitibano”. Apesar de encontrar mais olhares de reprovação aqui do que na capital paulista. Ao chegar, passou pela típica recepção de boas-vindas que Curitiba entrega a todos, composta por uma dose considerável de solidão e de dificuldades para se enturmar. Contudo, o “se tornar curitibano” tem a ver com superar isso. É “não precisar mais se entrosar com a cidade nem com as pessoas”.

Orquestra Sinfônica do Paraná

Sua primeira viagem para os lados de cá foi direto para integrar o naipe dos contrabaixos da Orquestra Sinfônica do Paraná. Não teve qualquer namoro prévio com a cidade, veio de mudança atrás da música em 2017. A mesma música que chegou à vida dele enquanto ainda era criança, ao participar do programa que o Instituto Baccarelli mantém na comunidade Heliópolis e que usa a arte para promover a transformação social. Souza poderia ser garoto-propaganda dessa iniciativa. Ele se formou pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e hoje, aos 24 anos, é um dos músicos mais jovens na sinfônica paranaense.

Aos 10 anos teve seu primeiro encontro com o instrumento que toca e ama, o contrabaixo. Não foi amor à primeira vista, mas o encanto surgiu rápido e só cresceu com o passar do tempo. A ideia era tocar clarinete, mas quis o destino que o menino chegasse atrasado para a primeira aula. Perdeu a vaga e ficou desolado, mas uma professora o incentivou para participar de outra aula ainda por começar. Com brilho nos olhos, ele explica que o “baixo” tem isso, é muito grave, então soa quase como se estivesse com um leve atraso nas músicas.

Coragem para se assumir

Foi aos 15 anos que assumiu sua orientação sexual para a família e amigos, munido de muita coragem e também de muita certeza. Sabia desde criança que era gay, sem dúvidas. O processo não foi simples porque nasceu numa família humilde e morava numa comunidade carente. Porém, ser aceito e amado pelos familiares é animador. “Deu tudo certo”, diz ele. Hoje, gosta de ser reconhecido como um homem gay e fala com uma segurança invejável: “Eu sou o Gustavo, tenho 24 anos, sou músico, toco no naipe dos contrabaixos e sou gay.”

Não é à toa que a definição é parte de sua apresentação. O jovem, que vive uma união estável com um parceiro que também é músico, acha que ficou para trás o tempo em que o termo gay era um excesso de discriminação. Vê que estamos passando por renovações em todos os ambientes, inclusive no meio orquestral, e considera o autorreconhecimento e o orgulho – de ser quem você é – aspectos fundamentais nesse processo de mudança. Contudo, deixa claro que a homofobia ainda está entre nós, de maneira velada e também contundente.

Homofobia velada

Uma passagem com um tom de humor é quando afirma que, ao se declarar gay, a resposta recorrente das pessoas é: “Eu adoro a Madonna”. O músico também adora a diva pop, que considera perfeita, só que o gosto pela cantora não é algo que define a homossexualidade. Gosta de Madonna porque “é a Madonna”.

Souza deixa claro que a Orquestra Sinfônica do Paraná é acolhedora, muito até. O seu companheiro, por exemplo, é presença frequente nos espetáculos. Não como plateia, mas no palco como músico “cachê” (é como são chamados aqueles que recebem por eventos específicos e que não são músicos fixos da orquestra). A convivência no âmbito profissional torna ainda mais evidente o relacionamento do casal  entre os colegas de trabalho. Entretanto, o contrabaixista explica que as orquestras – enquanto corpos artísticos – ainda são muito hierarquizadas, conservam tradições fortes e necessárias para manter a harmonia dos concertos clássicos em grande parte.

Pequena sociedade

Orquestras funcionam como uma pequena sociedade em que, às vezes, há democracia (os músicos elegem os maestros em Curitiba) e, às vezes, um preconceito velado. É comum que verdadeiros virtuoses sejam preteridos pela orientação sexual apesar da alta competência e do talento, o contrabaixista não passou por isso, mas tem amigos que já viveram a situação. Outras discriminações acontecem nas piadinhas com personagens gays, que saem sem pudor na frente de todos e, talvez, o pior preconceito esteja no brado por mais vigor comum entre os maestros: “Deixa de tocar feito um ‘viadinho’!”, dizem.

Agressão

Esse tipo de situação, o contrabaixista não tolera. Mesmo que seja preciso acionar a Justiça, algo que já teve de fazer no passado. Em 2006, ainda em São Paulo, Souza e o companheiro foram agredidos dentro de um trem. Um homem começou a fazer ofensas e terminou empurrando o rapaz sob a justificativa de que aquilo – estarem de mãos dadas – era imoral. Ganharam o processo por injúria que era o cabível naquela época. Hoje, o Supremo Tribunal Federal equipara o crime de homofobia ao de racismo.

O chocante é que, como se tratava de injúria, o criminoso tinha muitas oportunidades para escapar da penalidade, poderia ter negado o que aconteceu, poderia pedir desculpas, poderia ter admitido a ofensa e aceitado pagar uma pequena indenização. A convicção de que a ação estava amparada pela defesa da moral e dos bons costumes acompanhou o agressor até a condenação: a pena de um ano e seis meses foi convertida em serviços comunitários e multa. Parece pouco, mas significa muito. É uma das raras vitórias da comunidade LGBTI+ no Brasil.

O preconceito é uma construção

Souza espera que as diferentes orientações sexuais sejam vistas com naturalidade, pois a homofobia é uma construção, não se trata de um preconceito nato. É possível chegar lá. Ele lembra do dia em que conheceu a sobrinha de seu companheiro. A menina apenas perguntou: “Ah, você vai ser meu tio?”, ele respondeu que sim e pronto. “Uma criancinha aceitou assim, com a maior naturalidade do mundo”, diz o rapaz.

A certa altura, o contrabaixista da Orquestra Sinfônica do Paraná, que soma 14 anos dedicados ao estudo e à prática de repertórios orquestrais, revela algo inesperado. Nas horas vagas, para relaxar, gosta de ouvir choro – contabiliza um número impressionante de horas dedicadas ao gênero no Spotify. E o que mais você gosta de ouvir quando deixa o instrumento da orquestra de lado? Num tom espirituoso, com um sorriso no rosto, ele responde: “Funk!”.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Perfil: Gustavo Filippe de Souza, o jovem músico gay da Orquestra Sinfônica do Paraná”

  1. Que história linda do Gustavo!
    Esses dias passou um projeto na câmara de Curitiba dando honraria a uma psicóloga chamada Deuza – uma psicóloga que apoia tratamentos pra “reverter” pessoas gays. Fiquei muito mal quando li sobre aquilo. Chorei, fiquei mal mesmo – não só por essa tal de Deuza mas por ter tanta gente ruim lá na câmara, que provavelmente se dizem pessoas do bem.
    Curitiba precisa que o povo entenda que a gente não pode continuar votando ou seguindo nas redes sociais esses políticos, que não dá pra gente ficar votando em gente como o Rafael Greca por hábito, por costume – nossos votos fazem realmente a diferença na sociedade – para o bem e para o mal – e tem muita coisa horrível acontecendo em Curitiba, como a perseguição daquele rapaz vereador Renato Freitas que esses dias foi até homenageado na Igreja do Rosário no largo da ordem, mas ele agora foi removido como vereador de Curitiba e também foi uma coisa que me deprimiu bastante. Eu sou gay mas não sou preto, mas eu consigo ver o racismo e o tsunami de notícias falsas que atacaram Renato Freitas e como também o PT ficou quieto, deixou o rapaz ser atacado, mas mais ainda como que a gente aqui em Curitiba ficou quieto diante de uma coisa tão terrível, diante de uma câmara municipal e um prefeito tão abomináveis. A gente precisa de mais gente gay e mais gente preta na política de Curitiba. Eu não tenho nada contra pessoas evangélicas, mas é muito preocupante quando tem TANTO pastor evangélico trabalhando como vereador – não acho isso certo. Tem um conflito de interesses. O lugar da bíblia é na igreja, não no legislativo. Quem escolhe ser líder religioso, de qualquer religião, tem automaticamente abdicar de ser político. Assim como tem uma policial militar lá na câmara. Quem escolhe ser policial também não ser político, tem conflito de interesses e poderes aí também. Enfim, desculpe o desabafo e muito orgulho de ter Gustavo morando em Curitiba. Seria interessante do Plural fazer uma reportagem com o SEPED, eles representam os artistas cênicos e teve uma reunião importante esses dias e seria interessante de ler uma reportagem sobre as dificuldades que a classe vem passando.

    1. Luciana Nogueira Melo

      Robson, agradeço a sugestão e ainda mais o comentário. Depoimentos como o seu são importantes para o trabalho de nossa equipe, inclusive para continuarmos levantando pautas que denunciam o preconceito na sociedade e também a ausência de diversidade na política. Muito obrigada.

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