História revolucionária do primeiro disco de Nara Leão inspira livro de Hugo Sukman

Pesquisador procura entender um momento crucial da música brasileira em "Nara – 1964", publicado pela Cobogó

“Nara Leão: Nara – 1964” conta a história do disco que virou uma página importante na música brasileira. Em sua primeira gravação, a chamada “musa da bossa nova” – a menina branca e rica de Copacabana – resolveu cantar o samba do morro. Mais que um livro de história cultural, o trabalho de Hugo Sukman é um mergulho na história do Brasil. 

Jornalista, escritor e crítico de música, Sukman trata do tema com propriedade. Além de ter escrito uma peça biográfica sobre Nara Leão, “A menina disse coisas” (2018), ele é autor de várias obras sobre o meio musical, como “Histórias paralelas – 50 anos de música brasileira” e “Heranças do samba”.

Em entrevista ao Plural, feita por e-mail, o autor fala sobre a revolução que o primeiro disco da “tímida mais abusada da história” representou para a música brasileira e das muitas descobertas que fez ao escrever o livro.

Você lembra o momento exato em que decidiu que escreveria “Nara Leão: Nara – 1964”?
O convite da Cobogó foi para fazer um livro sobre um disco da Nara, mas a editora me deixou livre para escolher o disco. E eu logo pensei em algum disco que rendesse um desdobramento, que a partir dele se pudesse contar uma história mais ampla. Logo pensei, intuitivamente, no primeiro disco, que sempre achei dos mais importantes da história da música brasileira. Mas também cogitei o “Opinião de Nara”, por ter inspirado o espetáculo “Opinião”, no “Vento de maio”, no qual ela reúne e de certa forma lança os jovens Sidney Miller e Chico Buarque, ou no disco tropicalista, que ela gravou em 68 com arranjos de Rogério Duprat.
Estava em São Paulo, por acaso, voltando de carro para o Rio e resolvi aproveitar as seis horas de viagem para reouvir a discografia inteira da Nara. E, mesmo toda a imensa e espetacular discografia da Nara – e ela fez quase que só grandes discos – não me provocou o mesmo impacto da audição do primeiro. Tentei ouvir com ouvidos virgens, e logo percebi que se tratava de um disco revolucionário, que apresentava na verdade um novo programa para a música brasileira, programa que se realizaria.
Nesse momento, na estrada entre São Paulo e Rio, tive a certeza de que “Nara”, de 1964, seria o disco do livro. Ele anuncia o que seria a música brasileira a partir dali. E lança compositores do porte de Elton Medeiros e Edu Lobo, grava os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, é a primeira cantora a gravar uma das composições do Moacir Santos, “Nanã”. Ela redescobre Cartola para a música brasileira e grava os chamados compositores “de morro”, como Zé Kéti e Nelson Cavaquinho. Estabelece uma estética para as canções de protesto, como “Feio não é bonito”, de Carlos Lyra e Guarnieri, a partir do samba, e “Canção da terra”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, a partir da música nordestina. E, mesmo com tanta história e tanta novidade, permanece maravilhoso como disco, todas as suas 12 faixas eram e continuam sendo grandes canções, com arranjos e interpretação atemporais. 

Gravado e lançado nos meses que antecederam o Golpe de 64, o ambiente de agitação política foi definitivo para o disco ficar como ficou. Por isso o título do livro é “Nara – 1964” porque é impossível entender o disco sem entender o ano em que ele foi feito.

Hugo Sukman, autor de “Nara – 1964”

Na pesquisa para o livro, qual foi a descoberta mais impressionante que você fez? 
Mesmo achando que conhecia bem o disco e suas histórias, as descobertas na pesquisa e nas entrevistas foram imensas. Descobri que, ao contrário do que se diz, o famoso Zicartola, primeira casa noturna da história dedicada ao samba criada por Cartola e Dona Zica, não foi inaugurado em setembro de 63, mas em 21 de fevereiro de 64, na mesma semana do lançamento de “Nara”. Fica provado que Nara não foi influenciada pelo Zicartola, mas o influenciou de certa forma e estava, no mínimo, no mesmo espírito que já vinha de alguns anos, de recuperação do chamado samba tradicional, que renasceria definitivamente dali para frente.
Descobri também que as famosas reuniões musicais na casa de Nara e a famosa redescoberta pelo jornalista Sergio Porto de Cartola, que estava afastado da música e da Mangueira e trabalhava como zelador em Ipanema, se deu exatamente no mesmo momento, na virada de 1956 para 57, o que me permitiu traçar uma linha paralela da vida dos dois, culminando na revolucionária gravação de “O sol nascerá”, que mudaria a vida tanto do compositor como da cantora, e da própria música brasileira. Descobri, também, que a letra original de “O sol nascerá”, era “O sol voltará”, e que foi o produtor do disco, Aloysio de Oliveira, ele próprio um letrista experiente, parceiro de Tom Jobim em clássicos como “Dindi”, que sugeriu a alteração, para que a letra ficasse mais natural. Descobri que a música foi feita em alguns minutos por Elton Medeiros e Cartola, desafiado por um amigo que queria ver o compositor fazer um samba ali, na hora, na sua frente. Essas descobertas são de apenas uma faixa, e com apenas um dos muitos personagens que gravitavam em torno de Nara e de seu primeiro disco.
Cada uma das 12 faixas, que merecem capítulos específicos no livro, tem uma infinidade de descobertas vindas desse meu mergulho em suas histórias. Mas a principal delas talvez seja a real e intensa influência do ambiente político da época e, em várias dimensões, nas decisões de Nara em seu primeiro disco. Gravado e lançado nos meses que antecederam o Golpe de 64, o ambiente de agitação política foi definitivo para o disco ficar como ficou. Por isso o título do livro é “Nara – 1964”, porque é impossível entender o disco sem entender o ano em que ele foi feito.

Capa do disco “Nara”, de 1964. (Foto: Reprodução)

O trabalho de escrever o livro mudou alguma ideia que você tinha no início do projeto?
Sim, antes de escrever o livro, eu achava que “Nara” era um disco de rompimento com o passado, pelo menos com o passado de Nara Leão como fundadora e “musa” da bossa nova. Descobri que, ao contrário, Nara é tanto uma projeção do futuro da música brasileira como reflexo de vários movimentos que vieram antes dele, até mesmo uma vertente da bossa nova. Não é por acaso que, com quatro canções, Vinicius de Moraes seja o compositor mais presente no disco.
Nara, na verdade, dá sequência à linhagem iniciada por Vinicius na peça “Orfeu da Conceição”, oito anos antes, que atualizava o mito grego para o Rio de Janeiro contemporâneo, considerando que o poeta que encantava o mundo com sua lira, naquele momento era sambista, negro e favelado. Essa ideia revolucionária está na base da descoberta de Nara do tal “samba de morro”, de Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho; de cantar músicas de compositores ligados à bossa nova, como Carlos Lyra, Baden Powell e Edu Lobo, mas composições deles inspiradas na cultura popular brasileira. Mais do que negar a bossa nova, que até ela própria achava que estava fazendo, Nara reafirma uma de suas vertentes e a arremessa para o futuro.  

“Nara” talvez seja o disco mais influente da música brasileira naquele miolo dos anos 60.

Hugo Sukman, autor de “Nara – 1964”

 Por que as pessoas devem ler “Nara Leão: Nara – 1964”?
“Nara” talvez seja o disco mais influente da música brasileira naquele miolo dos anos 60. Ele é um nó da cultura brasileira, que divide a história da música em antes e depois. Conhecer esse disco em detalhes, sua história, seu processo criativo, é um fascinante mergulho não apenas na história cultural, mas na própria história do Brasil. “Nara” é resultado de muita coisa que veio antes e influenciou muito do que veio depois. Depois de “Nara”, vieram as “Coisas”, de Moacir Santos, o espetáculo “Rosa de Ouro”, que lançava Paulinho da Viola e Elton Medeiros e recuperava Clementina de Jesus, e que resultou no histórico disco “Elizeth sobe o morro”.
Depois de “Nara”, Elis Regina abraçou o samba e surgiu Chico Buarque, e depois os novos cantores e compositores da Bahia, Caetano, Gil, Gal e Bethânia. Depois de “Nara”, a música brasileira passou a ser mais explicitamente política, atualizando-se para os difíceis anos de ditadura, passou a pesquisar mais e melhor suas origens populares, e a fazer uma nova e instigante tradução do Brasil, num movimento que perduraria muitas décadas e que ficaria conhecido como MPB [música popular brasileira]. O livro flagra o fascinante momento histórico em que isso estava sendo gestado, por igualmente fascinantes personagens que giravam em torno da inteligência, da leveza e do talento de Nara, ela própria uma personagem fascinante. 

Livro

“Nara Leão: Nara – 1964”, de Hugo Sukman. Cobogó, 224 páginas., R$ 49,50.

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