O imaginário popular é povoado por imagens de traficantes em bairros de periferia decadentes. Por jovens inconsequentes se entregando ao prazer fácil de uma dose. Por chefões do tráfico cujas principais características são o bigode proeminente e a criatividade na ocultação de grandes quantidades de drogas para atravessar as fronteiras, num roteiro em que os entorpecentes vão do Sul para o Norte e o dinheiro faz o caminho de volta.
Esse imaginário é parte essencial do que manteve em pé décadas de guerra contra as drogas, com milhões gastos em forças policiais especializadas, tecnologia para detectar os movimentos de grupos criminosos e muita violência de ambos os lados. Porém, na série “Dopesick” nada disso é parte do pacote.
Na produção em cartaz no Star+, o grande traficante não é um latino bigodudo, mas um homem branco, de terno e determinado a lançar um novo remédio lucrativo na empresa da família, a Purdue Pharma. O problema é que o remédio, Oxycontin, tem como princípio ativo um opioide – conhecido narcótico com alta capacidade de gerar dependência.
Mas esse remédio, que a Purdue começou a promover agressivamente, tinha baixíssimo índice de pacientes viciados, menos de 1%. Então o produto seria revolucionário por ter o condão de acabar com a dor quase eliminando o risco de tornar o paciente viciado.
Mentira
A empresa passou então a investir pesado em propaganda para médicos. Entre os profissionais abordados, está o dr. Samuel Finnix (Michael Keaton), um personagem usado para mostrar a dinâmica da farmacêutica com os médicos. De início, Finnix acha que uma droga com essas características era boa demais para ser verdade. Aos poucos, a campanha da Purdue – com vendedores, eventos, jantares – vai vencendo as resistências do médico. (Não é spoiler nenhum dizer que o índice inferior a 1% de pacientes viciados era, na prática, uma mentira cara e muito bem elaborada.)
Fatos e ficção
“Dopesick” é uma obra de ficção, mas baseada em fatos reais, especialmente no livro “Dopesick”, de Beth Macy, que relata a epidemia de Oxycontin na região de Appalachia, no estado de Virginia (EUA).
A promoção agressiva do Oxycontin gerou bilhões em lucros para a Purdue. Mas deixou um rastro de destruição e morte por todo os Estados Unidos, com milhões de pessoas viciadas e milhares de mortos. De início, os pacientes ficavam felizes com o remédio, a dor desaparecia. Mas eventualmente o paciente acabava dependendo de doses cada vez maiores.
“Dopesick” conta essa história real de vários ângulos, com personagens fictícios, como a jovem trabalhadora Betsy (Kaitlyn Dever), que se fere num acidente numa mina e com isso entra na espiral do Oxycontin, e verdadeiros, como o presidente da Purdue Pharma, Richard Sackler (Michael Stuhlbarg, o pai de Timothée Chalament em “Me chame pelo seu nome”), numa tentativa de desenhar as inúmeras instâncias que falharam em impedir que uma droga altamente viciante passasse a ser receitada para dores comuns – como as dores de dente ou de cabeça.
Apenas uma formalidade
Mas o que “Dopesick” faz melhor é ilustrar algo que o escritor Michael Pollan, de “Como mudar sua mente”, afirma categoricamente em um de seus livros: a diferença entre uma droga lícita e uma ilícita é só formal. São governos, legisladores, burocratas que colocam a cocaína de um lado e a cafeína do outro, quando ambas causam dependência e afetam o sistema nervoso.
No caso do Oxycontin, o programa ilustra bem, foi justamente a chancela da Foods and Drugs Administration (FDA), a agência que regulamenta remédios e produtos alimentícios nos EUA, que deu cobertura para a manutenção da venda do medicamento mesmo depois que o potencial de viciar e o risco de overdose se tornou evidente.
Streaming
A série “Dopesick” tem oito episódios com cerca de 60 minutos cada um e está em cartaz no canal de streaming Star+.