Dia da mulher: Ela colocou a violência de gênero em pauta

Do clitóris a compostagem, Maria Letícia (PV) conseguiu colocar a Câmara no centro da mobilização pela segurança das mulheres e agora mira no meio ambiente e prevenção

Era agosto de 2019 quando a vereadora Maria Letícia (PV), no plenário da Câmara, chamou a atenção de uma colega: “vereadora, este assunto te interessa”. Letícia estava apresentando informações sobre um projeto de autoria própria a respeito de saúde sexual. Como parte da apresentação, a vereadora mostrou aos colegas parlamentares uma foto de um clitóris e explicou seu funcionamento.

“Quando nem homens nem mulheres conhecem o seu corpo de maneira plena, o que vai repercutir desse não conhecimento será justamente uma sexualidade atabalhoada durante toda sua vida”, defendeu.

Médica ginecologista com 37 anos de experiência profissional, Maria Letícia trouxe para a Câmara uma maneira técnica, porém prática e direta para falar de temas antes só abordados na forma de clichês e moralismo religioso: sexualidade, violência de gênero, cannabis.

A fórmula política de Letícia provou errada as avaliações de aliados e concorrentes. Em 2020, a avaliação de partidários dela era de que a vereadora ficaria só no primeiro mandato ou talvez conseguisse emplacar uma terceira vaga da chapa na Câmara. Acabou sendo a única eleita no PV.

No segundo mandato a vereadora já está integrada ao bloco de oposição ao prefeito Rafael Greca (no primeiro ela inicialmente era da base de apoio, depois se tornou independente e finalmente foi para a oposição). O estilo de trabalho, diz, não mudou, mas a estratégia sim. “É comum ver projetos bons da oposição que são rejeitados”, explica.

Pobreza menstrual é outro tema patrocinado pela vereadora dentro da Câmara. Foto: Tami Taketani.

Violência de gênero

Para evitar o ostracismo, Maria Letícia diz que “chama para conversar” e foca em questões técnicas. “Eles sabem que leio os relatórios, que o que estou falando não é achismo”, explica ao se referir ao prefeito e sua base. A estratégia permitiu que a parlamentar aprovasse, apesar de ser da oposição, um projeto em 2021 de combate ao assédio e violência sexual contra mulheres no transporte coletivo.

O texto da lei estabeleceu a realização de campanhas informativas sobre o assunto nos veículos, bem como a realização de cursos para motoristas e cobradores e a determinação da colaboração das empresas em casos de violência. Pode ainda ser um passo pequeno, mas está anos-luz à frente de outras iniciativas da Casa, como o infame “ônibus rosa” proposto numa legislatura anterior pelo ex-vereador Rogerio Campos (PSC) e o projeto de “chiqueirinho” para mulheres dentro dos veículos em horários de pico, iniciativa da vereadora Tânia Guerreiro (PSL).

O que Maria Letícia conseguiu trazer para o parlamento foi justamente a experiência de quem conhece a realidade da violência de gênero, que viu em primeira mão no Instituto Médico Legal. “A violência contra a mulher é uma pauta que veio comigo por conta do meu trabalho como médica legista e que consigo fundamentar bem”, conta. O resultado foi abrir o espaço da Câmara para o tema e para o feminismo como um todo.

Avessa a projetos comuns aos demais vereadores, como os para nomear logradouros públicos, Letícia abriu uma exceção para algo que acredita ajudar a promover a conscientização. É iniciativa dela, como procuradora da Mulher na Câmara, a criação do Jardinete da Magó, uma homenagem póstuma a Maria Glória Poltronieri Borges, morta em 2020. Bailarina, produtora de dança e de teatro, Magó foi estuprada e morta enquanto fazia um retiro espiritual numa cachoeira próxima a Maringá.

Maria Letícia inaugura Jardinete da Magó junto a familiares da artista e o presidente da Câmara, Tico Kuzma (PROS). Foto: divulgação Maria Letícia

Neste segundo mandato, a vantagem é que o caminho já foi aberto. “No começo foi mais difícil”, relata. Há desconforto entre seus pares quando o assunto no plenário é gênero, sexualidade? “Não, porque estou legitimada”, diz. Depois dos primeiros quatro anos trabalhando pela visibilidade das questões de gênero, agora no segundo termo Letícia diz que “a pegada é a prevenção, meio ambiente”.

Isto é, a parlamentar tem trabalhado por temas que evitam que as pessoas adoeçam, como o acesso a alimentação segura e nutritiva e a prevenção de doenças através da vacinação. Justamente nessa linha, Maria Letícia voltou a apresentar em plenário imagens de vulvas e pênis, mas dessa vez para conscientizar seus colegas a respeito do HPV e das consequências do baixo índice de vacinação contra o vírus.

A vacinação de adolescentes contra o HPV, assim como a vacina da Covid-19, enfrenta uma barricada moralista e de informações falsas. O vírus HPV é responsável pela maior parte dos casos de câncer de colo de útero, além de outros tipos de cânceres no pênis, ânus, vulva e vagina. Com imagens das lesões no telão, a vereadora lamentou que estas doenças com alto índice de mortalidade aflijam a população apesar de serem evitáveis.

Articulação política

Se para uma vereadora de oposição aprovar projetos dentro da Câmara é quase impossível, conseguir deixar um legado na Casa exige mais do que entupir o sistema de propostas de leis. Em 2021, o trabalho legislativo de Maria Letícia mostra bem isso. Por um lado, ela se mune de informações, por outro usa a estrutura da própria Câmara para dar visibilidade as suas causas.

Só em 2021, a parlamentar apresentou 98 pedidos de informação à prefeitura de Curitiba. Mas como ela bem sabe, pedir nunca é o suficiente. “Normalmente meus questionamentos são fundamentados”, diz. Letícia também credita sua formação como médica como um elemento importante no diálogo com o Executivo.

“Conheço o sistema de saúde de Curitiba há muitos anos. Sempre acompanhei o SUS porque fui professora e preceptora, tava sempre envolvida nesse processo. Por isso consigo entender como funciona o sistema”, explica. Esse conhecimento, diz, ajuda a navegar a opacidade dos dados que a prefeitura fornece ao legislativo.

“Descobri que chamar as secretarias para conversar sempre me favorece porque consigo apresentar bons argumentos”, diz. “Não teriam como de maneira grosseira e sem fundamentação impedir que alguns projetos avançassem”, completa.

Por outro lado, a parlamentar insistiu para criar e tornar ativa a Procuradoria da Mulher na Casa, cargo que ocupa atualmente, além de presidir a Comissão da Meio Ambiente, onde está aproveitando para discutir projetos do Executivo que terão impacto na área. “Vários temas que iriam direto para plenário, conseguimos discutir com a sociedade, fazer audiências públicas”, conta.

Algumas das iniciativas que a parlamentar se orgulha de ter promovido vieram justamente da Comissão. Mas a principal, diz, foi ter participado ativamente da revisão da lei de Meio Ambiente do município, que substituiu a Lei 7.833, que era de 1991. “Temos agora uma lei mais estruturada e que contou com várias sugestões de iniciativa popular”, diz.

Bancada feminina

Em uma hora de conversa com o Plural, Maria Letícia reservou seus comentários mais duros às colegas de bancada. A nova legislatura que tomou posse em 2021 manteve as oito cadeiras ocupadas por mulheres na legislatura anterior, mas para a parlamentar a situação piorou.

No mandato anterior a bancada contava com, além de Letícia, a petista Professora Josete, Noemia (MDB), Maria Manfron (PR), as decanas Julieta Reis (DEM) e Dona Lurdes (PSB), Katia Dittrich (SD) e Fabiane Rosa (PSDC). Já em 2021, Julieta Reis se aposentou, Maria Manfron desistiu de concorrer, Dona Lourdes faleceu e a dupla de militantes da causa animal, Katia Dittrich e Fabiane Rosa, nem se candidataram depois de enfrentarem denúncias de “rachadinha”.

Com isso, a Casa manteve três vereadoras da legislatura anterior, mas recebeu duas vereadoras eleitas pelo Novo – Indiara Barbosa e Amália Tortato, a primeira vereadora negra eleita na cidade, Carol Dartora (PT), a policial militar Sargento Tânia Guerreiro (PSL) e Flavia Francischini (PSL). Dessas, apenas Dartora é declaradamente feminista.

O problema, diz Letícia, é que na legislatura anterior, as vereadoras não atrapalhavam os projetos de promoção da causa das mulheres. “As cachorreiras tinham maus hábitos, mas votavam junto”, brinca. Já suas colegas atuais “não votam e são resistentes” à causa. “Piorou muito no sentido ideológico”, explica. “Não é um bloco unido”, completa. Isso com exceção do bloco das mulheres da oposição, composto por ela, Josete e Dartora, do PT e Noemia Rocha (MDB).

A mal estar não é só de Maria Letícia. Enquanto apuravam informações para essa série de matérias, a reportagem do Plural teve dificuldades para conseguir reunir as oito vereadoras para uma foto. E teve um pedido para fazer um registro de Maria Letícia, Dartora e Indiara juntas rejeitado. Nada muito diferente do que ocorre com os demais parlamentares da Casa.

Mas se o clima geral não é bom, Maria Letícia reserva elogios a uma parlamentar em especial: a atual decana, Professora Josete. “Ela é uma parlamentar incrível, excelente”, diz.

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