O tiroteio

Não havia nenhum motivo pra ele parar naquela cidadezinha, exceto o tiroteio. Era uma cidadezinha desenxabida e desinteressante, os prédios pintados num tom de amarelo estrambótico, que fazia os olhos doerem, brilhando sob a luz do feroz sol tropical. Uma nuvem de projéteis assassinos, porém, atravancava o caminho. Zumbia, tirava lascas das paredes e, na maior sem-cerimônia, arrancou o boné da cabeça de um velho que estava na praça jogando dominó – bem no momento em que ele ficou puto por não ter um cinco.

O forasteiro se protegeu atrás de um Ford Ka, estacionado meio atravessado, em cima do passeio. O motorista afastou os olhos do celular e tirou a cabeça pra fora da janela. Quis saber:

– O que está fazendo aí?

– O quê?

– Por que está engatinhando aí, ô cara?

– É que…

– Você é maluco?

Resmungou, furibundo, algo sobre não se ter mais paz naquela terra, deu a partida e arrancou rápido dali, fazendo os pneus girarem em falso, atirando pedrinhas nas canelas do caminhante. Exposto ao chumbo, o forasteiro correu pra se abrigar numa loja de coletes, apinhada de gente, mesmo com o calor batendo os 31º C.

– Estão vendendo coletes? – perguntou, intrigadíssimo.

– É o que parece.

– E por que tanta gente quer um colete?

– Você é maluco?

– É um tiroteio!

– Mas são coletes de lã!

– Os melhores coletes de lã, senhor.

– E o preço é ótimo!

O forasteiro argumentou que coletes de lã eram muito pouco eficazes na hora de impedir que um balaço entrasse no seu coração. E ainda se podia ter um piripaque vestindo aquilo debaixo de um sol de rachar.

– E o que você sugere?

– É melhor isso do que nada!

– Quer que eu saia na rua só de meia soquete e camiseta?

Foi expulso a pontapés. Cruzou a rua principal aos tropeções e procurou refúgio em um bar, no mesmo momento em que uma rajada de balas espatifava a janela. A cabeça do dono apareceu atrás do balcão. Arqueou uma sobrancelha:

– Por que é que você não está de colete?

Pensou um pouco e emendou:

– Você é maluco?

O forasteiro repetiu que considerava os coletes de lã escudos muito pouco sólidos. E questionou por que todo mundo estava andando meio a esmo de um lado pro outro no meio de um tiroteio.

– É sábado. O que vai ser?

– Há quanto tempo estão atirando?

O homem no balcão deu de ombros:

– Faz uns meses.

– E quem está lutando contra quem?

– Ninguém está lutando contra ninguém não.

– E por que não param de atirar?

– Amor ao esporte, acho.

Uma saraivada de balas destruiu a garrafa de cerveja sobre o balcão. Deu no pé, assustado. Sob a cobertura de um posto de gasolina, o forasteiro viu um homem correndo no meio da rua. De repente ele parou, virou pra trás, deu quatro tiros e retomou a corrida. O forasteiro insistiu:

– Por que esse cara atirou?

– O prefeito disse que não tem o que fazer.

– É a vida.

– Vai acertar quem tiver que acertar.

– Depois volta ao normal.

– Um dia vai passar.

– Por que você não está de colete?

O forasteiro não ficou satisfeito:

– E quem é o prefeito?

– Aquele lá em cima. No mirante. Consegue ver?

– Aquele com um rifle?

– Isso.

– Feio como um urubu albino?

– Esse mesmo.

Saiu dali tentando imaginar um jeito de dar o fora daquele lugar. O motorista do Ford Ka passou por ele a 60 quilômetros por hora, deu um cavalo de pau e brecou bem na sua frente, como na cena de um filme de ação ruim hollywoodiano. Se esticou dentro do carro e abriu a porta do passageiro. Falou também como o personagem de um filme de ação ruim hollywoodiano:

– Quer uma carona?

A noite estava caindo, e o tiroteio ainda era cerrado, mas nos limites da cidadezinha as balas zuniam menos. O motorista abriu de novo a porta e enxotou o forasteiro aos empurrões. Advertiu:

– Quem você pensa que é?

– Eu…

– E nunca mais volte aqui!

Arrancou e sumiu de vista o mais rápido que conseguiu. No lusco-fusco, o forasteiro olhou um letreiro de neon que começava a piscar, como em um puteiro de quinta categoria, dando as boas-vindas aos visitantes. Dizia: “A esperança é a última que morre. Ela enterrará todos nós”.

Saltou por cima de um cadáver com a cabeça explodida e foi embora – para Tonga.


Para ir além

Loucura, loucura, loucura

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