Ultra Secreto: Relatório n.° 438 de Atividades Suspeitas

De acordo com as prerrogativas e demandas da última reunião, segue o relatório das vídeo conferências requisitadas

Videoconferência 01: presentes Camarada Vladimir e Camarada Gustavo

Dia 12 de fevereiro, 00:13 a.m.

Camarada Vladimir em casa. Parede pintada de vermelho, uma foice e um martelo de verdade cruzados, aparecendo no canto direito superior da tela. Camarada Gustavo em casa. Fundo de prateleiras, alguns livros de sociologia e bonecos de brinquedo (o Camarada Yuri disse que são colecionáveis do Star Wars).

Segue registro em vídeo do acontecimento 01, a partir de 02:43 do vídeo original.

– Estou orgulhoso de você, camarada Gustavo

– Bondade sua, Vladimir.

– Não é bondade, é a realidade. Estamos acompanhando seu ativismo online, seu comprometimento com a causa revolucionária, e você tornou-se uma das fontes de inspiração do nosso ativismo no sul do Brasil.

– Eu realmente acredito na igualdade entre as pessoas. Nem entrei no movimento por causa de marxismo ou coisas assim. Foi mais por Paulo Freire e por ter uma infância católica. Só queria o mesmo que Jesus queria.

– Seus objetivos são claros, sua busca é positiva e é isso que importa.

– Obrigado, Vladimir.

– Assim como Jesus, você tem convertido muitos para o nosso lado!

– Ah, não, isso não…

– Tem sim, não fique envergonhado. É uma constatação real. A gente tem usado você como exemplo aqui, na sede.

– Poxa, que é isso…

– Você tem toda razão ao não ficar exaltando expoentes socialistas, eles estão contaminados dessa propaganda direitista raivosa, desses fake news todo. Ao colocar de maneira humanista, direta, mais pessoas conseguem ver o nosso lado.

– Não é uma estratégia, eu realmente enxergo assim.

– Nós entendemos você, respeitamos você e queremos alguém como você mais perto do núcleo ainda.

– Poxa, Vladimir. Que honra!

– Queria, inclusive, marcar um jantar com você.

– Um jantar?

– Sim. Online, claro! Com você e a sua esposa.

– … com a minha esposa?

– Você, sua esposa, eu, minha esposa, um jantar entre amigos, pra gente se conhecer ainda melhor.

– …

– Gustavo, acho que você travou na videochamada.

Relatório: após verificar o vídeo tecnicamente, Camarada Yuri aponta que não houve nenhuma interrupção do vídeo, apenas uma demora de resposta do Camarada Gustavo.

– Gustavo?

– Oi, Vladimir. Claro, um jantar. Sim, vamos, claro.

– Pode ser hoje mesmo?

– Hoje?

– É que é madrugada do novo dia, camarada. Quero dizer o nosso próximo jantar, às 20h.

– Hoje ainda? Hoje…

– Camarada Gustavo, eu realmente gostaria de conhecê-lo melhor antes de te convidar para participar do núcleo do nosso movimento. Agora, se você não quiser eu vou com…

– Sim, é possível, claro que é possível! Hoje, às 20h. Eu e… a minha esposa.

– Camarada… Você é casado, não? Li na sua ficha que você é casado.

– Sim, sou, há 15 anos.

– Ótimo, sou casado há 23. Poderemos falar das dificuldades do ativismo e da vida doméstica!

Nesta parte do vídeo Camarada Vladimir ri muito e Camarada Gustavo sorri num canto de boca.

Videoconferência 02: presentes Camarada Vladimir, Camarada Gustavo, Camarada Renata e Sra. Sônia.

Dia 12 de fevereiro, 08:21 p.m.

O próximo vídeo é da videoconferência entre Camarada Vladimir e Camarada Renata, de sua casa com mesa de madeira e quadros de mulheres heroínas, e de Camarada Gustavo e Sra. Sônia, de sua casa com mesa de vidro e um quadro estranhamente abstrato e colorido ao fundo (Camarada Yuri disse que é de Homero Britto). Camarada Renata não falou nada durante a chamada, pois estava num voto de silêncio em prol do fim da opressão no Nepal, mas suas expressões faciais deixam claro sua perplexidade. O vídeo deste relatório começa em 12:31 da videochamada original

– … e ninguém parecia se importar!

– É, as pessoas parecem não se importar às vezes, Gustavo.

– Foi aí que eu decidi participar do movimento.

– E tem feito um excelente trabalho, desde então.

– Bondade sua, Vladimir.

– Gustavo, escute um elogio de alguém e aceite. Eu falo pra ele, Vladimir, que ele precisa relaxar de vez em quando.

– Escute sua esposa, Gustavo. Eu escutaria a minha, se ela estivesse falando.

Relatório: todos riem muito nessa hora, inclusive Camarada Renata. Ela dá um soco no ombro do Camarada Vladimir e sabemos que é afetuoso, porque Camarada Renata é especialista em Krav Maga e poderia fazer um estrago a curta distância.

­– E você, Sônia?

– Eu?

– Sim, o Gustavo não nos contou o que você faz.

– Ei, amor, acho que a nossa comida vai queimar! Tô sentindo cheiro de queimado…

– Poxa, Gustavo, então levanta e vai lá desligar o fogão.

– Exato, Camarada Gustavo! Não vivemos mais em tempos de exploração da mão de obra feminina para trabalhos domésticos.

– É, eu sei…

– O que você faz da vida, Sônia?

– Eu sou corretora.

– De imóveis?

– Não, da bolsa de valores.

– Oi?

– Gente, acho que a gente deveria erguer nossas taças a esse encontro tão gostoso, num momento tão…

– Camarada Gustavo, só instante. A Camarada Sônia trabalha como corretora da bolsa de valores?

– Ah, não precisa me chamar de “camarada Sônia” não, eu me sinto personagem do Street Fighter!

Relatório: aqui vale um pequeno adendo do choque em que Camarada Renata estava, pois ela quase emitiu um som e quebrou seu voto de silêncio. Outra pessoa que teve uma pequena síncope revisando o vídeo foi o Camarada Yuri, que esbravejava “Sonya é do Mortal Kombat e é Americana, глупый!”.

– Eu vou lá ver o jantar, antes que o Gustavo volte a imitar o pai dele pedindo pra mãe fazer tudo!

-… Camarada Gustavo, sua esposa trabalho pro antro do capitalismo?

– Eu realmente não achei que seria um problema, a Sônia passou a fazer isso nos últimos 4 anos depois que ela terminou um MBA…

– MBA! MBA! MBA é coisa de…

Relatório: neste momento, Camarada Vladimir é impedido de falar por Camarada Renata, que tapa a sua boca com a mão com incrível agilidade, porque a Sra. Sônia está voltando. Realmente, a Camarada Renata deve ser perigosa a curta distância.

– E tava pronto mesmo!

– Que delícia, amor. Parece apetitoso. Posso abusar que você está em pé e pedir pra você trazer o sal?

– Claro, mas não vão falar de mim nas minhas costas, né?

Só Sônia ri, saindo. Camarada Yuri, ao assistir, ficou murmurando “глупый” muitas vezes.

– Como você se atreve a trazer uma pessoa dessas pra perto de nós, Camarada Gustavo? Como não nos avisou? E imaginar que a gente queria alguém, próximo ao núcleo, envolvido no… mercado de ações.

Tanto Camarada Vladimir como Camarada Renata cospem no chão depois de falaram isso.

– Olha, Vladimir…

– Camarada!

– Camarada Vladimir, Sônia e eu não somos a mesma pessoa e eu nunca forcei minhas crenças nela e nem ela em mim. Nós fomos atraídos pelo lado complementar do que pensamos, a gente nunca pensou que seríamos um casal. Nos conhecemos na faculdade, numa daquelas aulas que misturam turma e, no começo, a gente batia boca, discutia muito. Mas aí…

– Aí você perdeu uma batalha de classes e se vendeu ao capitalismo!

– A gente não escolhe quem ama, Vladimir.

– Pronto, o sal está aqui!

– Obrigado, amor.

– Então, Sônia…

Relatório: neste momento do vídeo há diferentes perspectivas de cada um dos envolvidos. Camarada Vladimir parece pronto a esmurrar alguém com palavras. Camarada Gustavo está muito apreensivo, não sabendo se olha pro Camarada Vladimir ou pra própria esposa. Sra. Sônia parece em estado de graça e leveza, algo muito comum de se ver nestes malditos capitalistas dentro da sua ignorância e alheios ao sofrimento do mundo. Camarada Renata instintivamente está segurando a faca de maneira escondida, pronta pra tudo – ela realmente deve ser perigosíssima a curta distância.

– … que sal vocês vão usar esta noite?

– Ah, um sal marinho que a gente compra.

– Numa feira de produtores orgânicos! Que só tem produção local! E que vende algumas coisas extras. Né, amor?

– Credo, Gustavo. Tá começando a falar mais alto, que nem seu pai.

– Bom, se esse sal veio de longe, talvez seja um desses lugares que foi destruído por especulações financeiras, com total empobrecimento do mercado local.

– Bom, diz “Himalaia” aqui, então pode ser verdade.

– Sônia, como você se sente fazendo parte das engrenagens desse monstro?

– Qual monstro?

– O da especulação financeira e da destruição do equilíbrio econômico mundial.

– Ah! Eu não faço isso.

– Não?!

– Não, eu sou uma investidora de iniciativas ecológicas de curto, médio e longo prazo, apostando que em mercados menores com a certeza de que, além de ganhar dinheiro, o capital está circulando fora de grandes clusters econômicos e pulverizando novas startups em todo o mundo.

– … o quê?

– Bom, Camarada Vladimir, esse era todo o meu medo: eu vou perder vocês agora pra Sônia, porque é só com ela que vocês vão querer falar pelo resto da noite! Eu perco todos os meus amigos pra…

– Tá, tá. Sônia, você faz investimento que promovem melhorias sociais e ainda recebe lucro por isso?

– Claro! Veja só…

Relatório: a reunião seguiu por algumas horas e várias garrafas de vinho. A partir deste ponto do vídeo alguém poderia pensar que o Camarada Gustavo também estava em voto de silêncio. Camarada Renata, assim que largou a faca, começou a escrever perguntas para Camarada Vladimir ler. Todos riem muito.

Ao final deste relatório, queremos apontar que o fundo do Partido está sendo bem aplicado e teve um bom retorno nesses últimos dois meses. A Sra. Sônia insiste em não ser chamada de Camarada, apesar de que ela circula mais entre os integrantes do que o Camarada Gustavo. Eu mesmo coloquei uma parte do que tinha guardado numa startup asiática que promete resolver problemas de moradia com plásticos não recicláveis. Só o Camarada Yuri que insiste em apenas colocar dinheiro em CDI, porque ele se diz revolucionário nas ruas, mas conservador em investimentos.


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