Lia – Capítulo 92

Tudo chega ao fim. Tudo tem sua última vez. E quase nunca ela soube disso.

Um dia ela jogou fora seu paninho. Um dia viu pela última vez o boneco de flanela xadrez que sumiu sem qualquer explicação. Um dia sua avó lhe disse deus te abençoe pela última vez. Um dia, meros meses depois, foi seu avô.

Um dia sua mãe mexeu para ela o açúcar da xícara de café pela última vez porque aparentemente no dia seguinte ela virou moça grande. Um dia o cachorro da vizinha latiu para ela no portão, como sempre, mas depois ela passou dias sem ver o bicho até se dar conta.

Um dia Lia chorou pela última vez em público, dizendo-se em voz baixa que não sabia mais até quando aquilo iria acontecer, que gente grande não pode chorar quando fica triste, mas meu deus como é que eles fazem…

Um dia foi dormir sem saber o que era ter a língua de outra pessoa tocando seus dentes. Um dia colocou seu último balde sob uma goteira no teto do quarto da casa velha.

Um dia olhou para céu e de repente se deu conta de que podia passar o resto da vida olhando para o céu todo dia, mesmo horário até, se quisesse, mas nunca mais veria o céu que agora via. Sem explicação nem origem.

Um dia brincou com sua prima de princesa da Tomélia. Isso algumas semanas depois de num claro momento de terror elas terem se prometido que nunca na vida deixariam de brincar de princesa da Tomélia. Ela não lembra desse dia. Não lembra se foi ela ou a prima que foi a princesa.

Foi uma quarta-feira, Lia. Não que ajude.

Um dia ela chorou pela última vez em público. De novo. E não pela última vez.

Um dia viveu sem a certeza de ter outra pessoa dentro de si. Sem nem saber.

Um dia comeu o pão que sua mãe sovava.

Um dia comeu pão branco logo antes de dormir e não passou a noite num sono inquieto, toda inchada. Um dia apontou seu último lápis. Anos, anos atrás.

Um dia correu para pegar um ônibus sem se preocupar com as dores no joelho que poderia sentir depois. Um dia foi jovem. Deve ter sido uma outra quarta-feira.

Um dia, pela última vez, chorou em público pela última vez.

Pela última vez.

Um dia pôs os pés no chão e procurou seus chinelos com os olhos pesados e a luz do sol nas cortinas.

Quarta-feira.

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