Loucura, loucura, loucura

Eu mesmo tenho me sentido acabrunhado e desacorçoado, cabisbaixo e esgotado. E tenho tido uns sonhos esquisitos, que envolvem umas cobras de cores berrantes e várias cabeças, furiosas. (As cores parecem as daqueles drinques tropicais com guarda-chuvinhas, que a propósito eu sempre detestei.) Também sonhei com um bombardeio de napalm. Sim, um bombardeio de napalm. Posso dizer que já vi um bombardeio de napalm, uma vez, em Apocalypse Now. Mas ainda não sinto o cheiro pela manhã. Uma sequela de Covid-19 não diagnosticada? Talvez.

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Christian Yates, professor de Biologia Matemática na Universidade de Bath, no Reino Unido, se dispôs a calcular o volume de todos os coronavírus circulando pelo mundo e concluiu que ele não seria suficiente pra encher uma latinha de Coca-Cola. Explicou o cálculo, meio mirabolante, em um texto pra BBC. Não entendi direito, nem me interessei muito em entender. Ando cabisbaixo e esgotado, ocupado sonhando com bombardeios de napalm.

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No Brasil, um pequeno gole desse refrigerante venenoso matou quase 280 mil pessoas. Little Boy, a bomba atômica que destruiu Hiroshima em agosto de 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, era um trambolho de 72 quilos de urânio. Matou imediatamente 70 mil pessoas, e outras 60 mil até o final daquele ano. Olhando daqui, e pensando naquela latinha de Coca-Cola, foi um trabalho de amadores.

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“O que aprendemos em um ano de pandemia?”, uma amiga perguntou dias atrás num desses famigerados grupos de zap. Eu não aprendi nada, à possível exceção de que lá por abril de 2020 deveríamos ter crucificado o presidente de cabeça pra baixo em praça pública, enquanto dançávamos em torno de uma grande fogueira bebendo rum e entoando canções selvagens.

Fora isso, não me ocorre nada. Não fiz pão. Também não me empenhei em cursos online. Não participei de festas no Zoom. Nem ao menos posso me gabar de seguir o mesmo chato de pouco mais de um ano atrás. Apenas um homem sem graça, um homem monótono, um homem em tons pasteis. Agora, ao que tudo indica, estou a caminho de me tornar um lunático. Cobras flamejantes, bombardeios de napalm, essas coisas.

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É preciso considerar mesmo a possibilidade de que eu esteja ficando descompensado, desequilibrado, doido de pedra. Ou o mundo terá endoidado e eu serei o último homem lúcido da face da terra? Essa seria justamente a ideia de um louco.

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Faz um tempo, encontrei meu sobrinho fazendo a maior bagunça. Quis saber:

– O que você está aprontando?

– Uma experiência maluca, tio.

– Hum. E no que consiste a sua experiência maluca?

– Não sei. É maluca.

Ao que parece, meu sobrinho assumiu os controles do mundo. Pelo menos, do Brasil. No mínimo, do estado do Paraná.

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Agora, uma história que está numa nota de rodapé de Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm.

Em 1957, Mao Tsé-Tung considerava uma guerra nuclear inevitável. E, em conversa com o líder italiano Palmiro Togliatti, não se mostrou preocupado. Nos cálculos de Mao, deveriam sobreviver uns três milhões de chineses, o suficiente pra repovoar o mundo sob o comunismo. A mortandade atômica seria útil.

Se você der um tapa aqui, ajustar uma coisa ali, Jair Bolsonaro deve ter um plano parecido ao se empenhar para transformar o Brasil no covidário do mundo.

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E daí lembro de uma cena de Bem-Vindo a Sarajevo, de Michael Winterbottom. Nela, o jornalista inglês, de volta à cidade sitiada, está dentro de um carro com seu antigo intérprete. Diz:

– Você não mudou nada.

– Eu mudei sim. Eu perdi a inocência.

– Você nunca foi inocente.

– Eu pensava que minha vida e o cerco a Sarajevo eram coisas separadas. Agora, percebo que não há vida em Sarajevo exceto o cerco. O cerco é Sarajevo. Se não for parte dele, você está sonhando acordado.

Provavelmente com cobras e bombardeios de napalm.

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“É claro que, numa era de loucura, esperar ficar intocado pela loucura é uma forma de loucura.” Esse é Saul Bellow, em Henderson, o Rei da Chuva.


Para ir além

Piquenique marciano

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