O caso do jardineiro arrependido

No sábado de manhã, tendo ido a pé à Feira do Alto da Glória, encontrei pelas ruas muita gente perplexa. Admiravam-se, vejam vocês, com a floração exagerada das extremosas. Era como se nunca as tivessem visto antes. Curitiba, no entanto, está cheia delas, faz décadas. São árvores indianas, lindas, que souberam se adaptar muito bem à nossa cidade. Aprenderam, inclusive, a se tornar invisíveis. Este ano, talvez por conta do calor, é que abusaram um pouco. Floriram demais e caíram na boca do povo. Agora estão aí, desmascaradas. Florir demais, entre os curitibanos, é quase um crime de lesa-pátria.

Ao contrário do que possa soar ao ouvido brasileiro contemporâneo, extremosa é um adjetivo de significação singela. Nada tem a ver com radicalismos. Quer dizer carinhosa, terna. E é como essas árvores sempre me pareceram ser. Na infância, eu até as chamava de flores de papel, influência da minha irmã mais velha, que as batizou assim, num rompante de poeta ou naturalista. Dizia que as extremosas eram pés de papel crepom. Embora desconhecesse o nome popular da árvore em inglês, crape myrtle (algo como murta-de-crepe), ela já sabia ler as suas pétalas.

Nessa cartilha floral, admito, ainda estou me alfabetizando. Mas sempre que vejo uma extremosa, releio nela uma velha história. Diz respeito a dois jardineiros. O primeiro deles, amador, morava no Capão Raso, meu bairro natal. Vivia sozinho num sobrado simples, relativamente pequeno, mas rodeado por um terreno de tamanho considerável. Toda a sua vida doméstica, mesmo antes da viuvez precoce e da partida dos filhos, ele havia dedicado ao bom convívio com as plantas. Na frente de casa, cultivou um jardim espantoso, dominado por extremosas; aos fundos, um pomar de frutas cítricas. Era tudo muito bonito e correto. O equilíbrio perfeito entre o belo e o útil.

Só que um dia aquele homem morreu, e toda a beleza que produzira virou apenas um problema prático para seus filhos. Manter o jardim e o pomar custaria a eles algum dinheiro (não muito, mas algum dinheiro), e por isso demoraram a tomar uma decisão que respeitasse minimamente a memória do velho. De má vontade, numa votação que passou longe de ser unânime, resolveram por fim contratar um jardineiro. Uma vez por mês, até que vendessem o imóvel, um profissional experiente se encarregaria de podar as árvores necessárias, controlar eventuais pragas, cortar a grama, varrer as calçadas e arrancar o mato dos canteiros de flores. Deixar o local limpo e apresentável.

Tal arranjo, contudo, se arrastou por muitos anos sem que nenhum comprador sério aparecesse. As frutas amadureceram e apodreceram diversas vezes, e para o benefício apenas dos pássaros e do próprio jardineiro, que colhia parte delas e depois as distribuía entre seus amigos e parentes. Os herdeiros do velho, curiosamente, não se interessavam por frutas.

Um dia, em meio a uma crise familiar ou financeira mais profunda, seus filhos enfim desistiram daquilo tudo. Estamos perdendo dinheiro, disseram. Convenceram-se de que preservar o jardim onde cresceram não faria mais viva a memória paterna. Optaram, então, pela solução econômica: botar tudo abaixo. Enquanto não se livrassem do terreno, ao menos não teriam mais que arcar com aquele gasto inútil. Convocaram o jardineiro, agradeceram por seus serviços e pediram a ele que, em definitivo, derrubasse o arvoredo do velho.

Ótimo profissional, o jardineiro obedeceu. Como o trabalho seria pesado, reuniu seus filhos para ajudá-lo (dizem que eram muitos). No dia marcado, madrugaram todos e começaram cedo, pois precisavam aproveitar cada minuto de luz disponível. E tudo ia bem. À medida que a manhã avançava, o pomar desaparecia. Na hora do almoço já não havia uma árvore frutífera de pé. Laranjeiras, mimoseiras, limoeiros, tudo tombava diante do machado e da serra elétrica, do facão e da enxada. À tarde foi a vez do jardim. Uma a uma, caíam as extremosas. E uma a uma, o jardineiro e seus filhos as iam juntando num monte, a fim de removê-las posteriormente, em sabe-se lá quantas viagens de carreta.

Faltando pouco para anoitecer, quando tudo que restava do jardim era uma única extremosa, a mais alta de todas, carregada de flores roxas, o jardineiro mandou suspender a operação. Aconteceu de repente. Um mal-estar. Estava mareado. Sentia uma súbita vontade de chorar. Uma vergonha que não sabia definir direito. E sem compreender bem o que o movia, foi embora dali às pressas, levando consigo sua equipe de meninos. Nem terminou o serviço. Diria aos patrões que não tinha visto a árvore sobrevivente. Se preciso, abriria mão do pagamento. Deixou tudo lá, amontoado. Dezenas de árvores mortas à espera da remoção e, entre elas, a extremosa poupada, ereta como um dedo acusatório.

Com o tempo, o sobrado se tornou uma ruína, e o mato o tomou por completo. Demorou um pouco, mas ele acabou sendo vendido. Virou um predinho de azulejos. No Capão Raso essa história ainda é contada de vez em quando, mas como uma lenda, um caso exemplar, porém fabuloso. O jardineiro arrependido ganhou contornos míticos. Ninguém sabe exatamente quem foi ele, que fim ele teve, ou qual foi o seu nome. Sumiu na neblina dos séculos, assim como a extremosa que decidiu salvar, ou como as extremosas que destruiu sem hesitação, ou como o velho que, décadas antes, as plantou.

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