Oxalá!

Do ponto de vista filosófico, sou um materialista convicto. Ou, popularmente, um ateu safado – é tudo questão de perspectiva. Mas reconheço o valor, digamos, antropológico das religiões, e sempre gostei de mitologias.

Um causo rápido: quando trabalhei como assessor de imprensa numa campanha eleitoral (embora me considere um belo espécime de cínico, vira e mexe meu quinhão de idealismo adolescente me mete em umas roubadas), dividíamos o espaço com uma agência de publicidade. Em uma ocasião, enquanto eu lidava com uma impressora que parecia imbuída do firme propósito de me humilhar, alguém gritou:

– Quem aqui sabe qual era a deusa grega da agricultura?

– Deméter – gritei distraidamente de volta, estapeando a geringonça.

– Pô, cara, você manja de mitologia?

– Na verdade, eu via o desenho do Hércules no SBT.

Esse é o meu nível. Agora, de volta ao ponto de onde eu nunca deveria ter saído: reconheço o valor antropológico das religiões e gosto de mitologias. De modo que, há alguns anos, quando era um universitário demasiadamente beberrão, com um emprego estúpido e uma vida anárquica, correndo contra o relógio para concluir a faculdade de jornalismo, decidi que seria interessante escrever sobre manifestações de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.

Por semanas, zanzei por terreiros em diversos pontos da cidade, fiz amigos e tomei parte em celebrações que varavam a noite e terminavam com o sol já nascendo, com alguém distribuindo gordos pratos de feijoada, latas de cerveja barata e grandes pedaços de frango assado. Lembro do comentário de um homem negro, homossexual e com um gosto extravagante para roupas: “Vê se lá na Igreja Católica tem isso. Não tem. É aquela miséria, aquela hostiazinha sem graça”. Uma verdade incontestável. Eu, mil vezes pecador, ri.

As festas eram um espetáculo. As incorporações teatrais, o colorido, as velas bruxuleantes, os atabaques soando mais animalescamente do que o ápice de John Bonham em Moby Dick. Algum tempo depois, tomei ayahuasca, o chá feito do alucinógeno e ritualístico cipó vindo da Amazônia, e a poderosa experiência imagética, embora bem mais aguda, me fez pensar nos terreiros de umbanda.

No fim de uma dessas festas, depois de seis horas de celebração, me sentei em uma sala com um pai de santo exausto que secava uma garrafa de red label. A ideia era que conversássemos a respeito de sua vida, mas passei a maior parte do tempo observando ele administrar as brigas entre os frequentadores de seu terreiro – aparentemente, alguém roubara o namorado de alguém e armara a maior confusão. Já que estava lá, e pra não perder totalmente a viagem, tomei um trago também e relaxei estudando a cena (a verdade, como o diabo, mora nos detalhes).

Uma semana antes, uma mãe de santo me dissera: “Quem vem para o candomblé nunca vem sorrindo”. Ela se referia a como as pessoas, depois de passarem por uma educação cristã, podiam chegar até ela totalmente desesperadas, mas ainda assim vacilantes. Na época, pensei em como a entrega era tentadora. Eu vivia uma fase sombria e me perguntava diariamente quanto tempo duraria a travessia da escuridão.

As pessoas, sabemos, precisam de explicações para aquilo que não compreendem. E a vida, como escreveu Shakespeare (sim, camaradas, Shakespeare, a essa altura de uma segunda-feira), “a vida não tem sentido nenhum, é uma comédia escrita por um idiota, cheia de som e fúria”. Tudo o que elas têm é a exaustão de 44 horas de trabalhos semanais, um salário de fome, dois ou quatro ônibus por dia, maridos alcoólatras, gerentes de banco e cartões de crédito estourados, amores perdidos, amigos que se vão, a traição selvagem e cotidiana de si mesmas, grandes perguntas – de onde vieram, para onde vão, e o que exatamente estão fazendo agora no que supõem ser uma antessala metafísica: a vida – e apenas grandes espaços em branco onde deveriam estar as grandes respostas. Em resumo, tudo o que têm são duas mãos atadas às costas.

Achei ter compreendido o que a mãe de santo quis dizer. Fazia sentido. Uma madrugada, eu saía de um terreiro às cinco horas da manhã e pedi um táxi. O motorista puxou papo:

– Vocês gostam bastante de feijoada, né?

– Vocês quem? – quis eu saber.

–  Vocês do candomblé…  

O táxi guinava curva após curva de uma parte sinuosa do Bairro Alto.

– É, acho que sim. Não sou muito do meio, estou conhecendo. Na verdade, estou fazendo uma pesquisa.

– Mas esse povo do candomblé gosta de feijoada. Esses tempos fui levar uma mulher também num terreiro. Ia ter feijoada também. Era uma mulher bonita. Uma mulher filé mesmo, sabe?

– Acho que posso imaginar.

– Não sei corno uma mulher daquelas se mete com um negócio desses. Até me convidou pra entrar e comer com eles.

– E você?

– Não, não. Não gosto dessas coisas. Os outros podem fazer o que quiserem, é a vida deles, mas eu não sou dessas coisas. Sou católico, sabe?

Bom, e daí? Diga “oxalá!” a um muçulmano ou um candomblecista, e você provavelmente fará um amigo.

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