Não estamos vencendo

Há uma goiabeira na rua do hospital. É a primeira vez que a vejo carregada. Estamos em abril, as goiabas ainda verdes, e o processo todo me parece atrasado. Mesmo assim a goiabeira se destaca das outras árvores da quadra, em sua maioria discretos alfeneiros. Não que eles não estejam também carregados. Estão. Só que não de frutas ou bagas, e sim de japonas, sacolas, garrafas d’água, cones de trânsito, capacetes e pedaços de estopa. É neles que os guardadores de carros penduram seus pertences. Na copa de um desses alfeneiros, inclusive, cheguei a ver um porrete onde repousavam, desavisados, dois pardais. E aquilo me pareceu até bonito. Como se o porrete fosse um novo tipo de galho, uma mutação adequada aos tempos que correm.

Os guardadores têm serviço de sobra. O movimento no local é grande. Vestem coletes amarelos, verdes e alaranjados, não sei se há diferenças entre eles. Sei é que fosforecem em meio à sobriedade melancólica da rua do hospital. Ao contrário do que fariam em outros pontos da cidade, trabalham em silêncio, nunca gritam. Quando recebem seus dois, cinco, dez reais, agradecem: Deus abençoe. E se não recebem nada, a fala é a mesma: Deus abençoe. E tudo certo. Os pardais continuarão chilreando no porrete do alfeneiro que, por ora, ainda bem, descansa em paz.

Debaixo da goiabeira, na rua do hospital, há um ponto de táxi. À sombra da árvore, os taxistas conversam sobre política. O país está dividido, e as discussões se acaloram facilmente. O tom às vezes sobe. Uma vez dois taxistas se dispuseram a sair no tapa. Houve ameaças, punhos cerrados. Mas chegou uma mulher com uma criança doente, num carrinho de bebê já pequeno para o seu tamanho. E ambos cancelaram a briga, retornando a um mesmo patamar de solidariedade. Prestimosos, uniram-se para ajudar aquela mãe exausta a embarcar o seu filho, a guardar no porta-malas o seu carrinho. A ir embora dali, para onde quer que fosse.

Na rua do hospital, aliás, as crianças estão em toda parte. Diante das lanchonetes populares, das farmácias onde quase ninguém entra porque tudo é caro demais, na porta do banco e dos restaurantes executivos, na expectativa de um trocado, um refri, um cafuné, uma palavra de consolo. Estão no colo de suas mães ou numa cadeira de rodas. Na boca de cada criança, uma chupeta, um chiclete ou uma máscara descartável. Junto às árvores ou então rente ao muro alto da faculdade, tentam se proteger do sol, do vento, da garoa. Se não estão dormindo, estão comendo. Pipoca, picolé, bolacha, coxinha, banana, salgadinho. O que é ótimo. Vê-las comer nos dá uma satisfação desconexa que por ser assim, meio avulsa, é ainda mais contagiosa. É uma alegria, e toda alegria faz bem ao mundo.

Os ambulantes, claro, também estão lá. Sobem e descem a rua do hospital, numa romaria sem fim. Carregam isopores abarrotados de bolos, tortas, geladinhos, bombons, cocadas, brigadeiros. Há quem venda broas caseiras, pães de queijo, roscas de polvilho azedo. Não importa, é tudo saboroso. E há quem venda conectores de carga. Porque há sempre alguém desesperado para dar uma notícia, boa ou má, a um amigo ou um parente, numa cidade distante. Se você compra algo deles, os ambulantes dizem: Deus abençoe. Se não compra, dizem: Deus abençoe. E o mesmo ocorre com as mães e as avós, as crianças e os homens, saudáveis ou não, em geral desempregados, que nos pedem ajuda na rua do hospital. Se você ajuda, Deus o abençoe. Se não ajuda, Deus o abençoe também.

Nos dias de calor, a rua do hospital até parece travestir-se de praia, ou parque, ou clube. Nela reina uma ilusão de serenidade, de sossego, de férias. O que é justificável. Porque é mesmo preciso encontrar um jeito de se distrair e relaxar por ali, um jeito melhor e mais suave de viver. Todos estão sempre à espera de alguma coisa. A hora da consulta, a hora de tomar a medicação, a hora do exame, a hora de reembarcar na viatura da prefeitura, nas vans e ambulâncias municipais, nos ônibus fretados que os trouxeram do interior, durante a madrugada. Esperam a hora de voltar para casa, com ou sem doença, com ou sem esperança. E enquanto aguardam, tiram as sandálias, os sapatos, as meias. Uma libertação ainda possível.

Sim, qualquer alívio é bem-vindo. Qualquer prazer, uma obrigação. Arejar os pés. Olhar o movimento. Namorar as bijuterias no camelô da esquina, fantasiando outra vida. Conversar com estranhos sobre assuntos de interesse real, comum, imediato. Política não, nunca. Religião sim: o talento de um jovem pastor, as admoestações do velho bispo, a saudade de rezar para a Virgem Maria, a beleza do padre cantor. Futebol também: o sonho de ver o piá jogando na base do Coxa, o neto no juvenil do Furacão, mas isso se Deus e a saúde um dia permitirem. As ofertas de emprego. As novidades cosméticas. O preço dos remédios, da comida, das roupas. E, claro, as promoções. De leite, sapatos, produtos de limpeza.

Na rua do hospital não há marquises. Mas há muretas, cadeirinhas de praia, tocos de madeira e trechos de grama que, de tão maltratados, já vão rareando. Ali o povo deita e cochila, ri e ora, faz cálculos e fala no celular, chora de raiva ou desânimo. Sempre cuidando para não sujar o traje de viagem, sentando sem querer no cocô dos cachorrinhos da vizinhança, nas baganas de cigarros e baseados ou nas tampinhas verdes de Heineken que os notívagos largam pela calçada enquanto orbitam os bares da rua, salpicando o chão de estrelinhas vermelhas.

De dia, ali, ninguém bebe álcool. Não é lugar de beber. Por isso os bêbados já chegam calibrados. É o caso de uma mulher que tenho encontrado com alguma frequência na rua do hospital. Sempre com um mesmo envelope de radiografias debaixo do braço, o hálito forte de cerveja. Dia sim, dia não, ela me pede dinheiro, repetindo a mesma frase: Ajuda, moço, ajuda porque nós não estamos vencendo, nós não estamos vencendo. Eu concordo com ela, sem dúvida não estamos vencendo. Mas nem sempre ajudo, o que não a impede de me dizer: Deus abençoe.

De minha parte, quase sempre, me sinto abençoado.

Leia mais crônicas de Luís Henrique Pellanda

https://www.plural.jor.br/dente-de-leao/
https://www.plural.jor.br/coracao-de-guizo/

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Não estamos vencendo”

  1. Muito lindo o texto, extremamente sensível. Um vizinho saiu de um desses hospitais semana passada. Deu até vontade de escrever algo.
    Parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima