A crônica não mata – Parte 8

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O que mais me faz falta nesta pandemia é o contato cotidiano e quase inconsciente com as coisas desimportantes. O simples ato de acompanhar o crescimento do mato num terreno baldio pelo qual se passa diariamente e, certa manhã, ao perceber que o lugar foi carpido, lembrar-me de que é preciso cortar o cabelo.

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Há dois invernos não tenho a oportunidade de caminhar pelas ruas onde, à esta época, as cerejeiras florescem. Sinto falta dessa rotina, antes tão comum. Do meu apartamento, num décimo terceiro andar da Amintas, só consigo avistar duas dessas árvores por entre os prédios, ambas na General Carneiro. Pego os binóculos e as passo em revista. Estão em seu melhor momento, semana que vem já não chamarão a atenção de ninguém. Corro à prateleira de autores japoneses, à procura de uma antologia de Saigyō, poeta budista do século 12. Folheio o pequeno volume e logo deparo com os versos que queria reler. Eles formulam uma pergunta que me parece cada vez mais essencial: por que meu coração ainda abriga esta paixão por flores de cerejeira?* Não sei. Mas, se soubesse, isso resolveria alguma coisa?

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Muita gente tem me confidenciado, nos últimos dias, que não aguenta mais tanta tristeza. Em geral respondo que nada tenho a dizer que nos possa servir de consolo, apenas que também me sinto triste. Mas agora, com o livrinho de Saigyō nas mãos, reencontro o poeta em Quioto, entregue a serenas divagações, e me animo um pouco. O monge contemplava a lua sobre a antiga capital japonesa quando, de repente, foi visitado por uma revelação: os pensamentos tristes de que antes era acometido, pensou, teriam sido somente passatempos, nada além disso, inúteis passatempos. Tudo no mundo, escreveu Saigyō, são inflorescências que caem.

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Não há platitude maior que esta: dizer que o tempo passa. Não o dizer, porém, não faz o tempo parar. Por isso o cronista cede à tentação do óbvio e anota: já são dezesseis os meses de isolamento. Mais de meio milhão de mortos no Brasil. Não, a crônica não mata, vocês estão cansados de saber, mas também não cura ninguém, e tampouco será capaz de ressuscitar quem quer que seja. O que um cronista poderia fazer, então, além de dedicar aos que partiram uma imaginária oferenda de flores de cerejeira?

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Hasteou-se em Curitiba a bandeira amarela. Viva! Um grupo de moços se reúne num bar da Amintas. Posso vê-los da janela do meu quarto. São mais ou menos vinte pessoas ao ar livre, todas sem máscara. Bebem. Erguem brindes, celebram o aniversário de alguém, muitas felicidades, muitos anos de vida! Cantam e correm atrás de uma alegria que já não podem mais desperdiçar, pois o tempo não para e em breve estarão velhos, ou doentes, ou mortos. Juntaram três ou quatro mesinhas, e é sobre elas que batucam, que se abraçam, que se entrelaçam. Emendam canção após canção. À meia-noite, cada vez mais desesperados, ainda entoam seus hinos. Sua música atravessada invade meu apartamento. Uma quadra acima, na mesma rua, fica o Instituto de Medicina do Paraná, hoje um hospital exclusivo para o tratamento da Covid. Deve haver uma centena de pacientes ali, calculo, alguns deles intubados. Tento imaginar como estarão se sentindo as enfermeiras e os enfermeiros de plantão, vagando de um a outro leito de UTI, ao ouvir as vozes dos jovens que lá embaixo, a céu aberto, proclamam em coro: “Eu durmo tarde, a noite é minha companheira, salve o amor, salve a amizade!”

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Minha filha caçula está entretida com o tablet. Me esforço para entender a dinâmica do jogo que a absorve. Seu avatar traz acima da cabeça um nickname e flana por uma cidade pré-pandêmica, feita de blocos coloridos, casas, torres e edifícios de vários tamanhos e estilos. As ruas estão cheias de gente. Lá ninguém usa máscaras, não é preciso. Dezenas de avatares de outros jogadores, de inúmeros países, correm de lá para cá, também ostentando nicknames sobre a testa, como distópicos diademas. Às vezes se atropelam, empurram-se, irritam-se. Ignoram-se. Curiosos, invadem a propriedade alheia, de onde acabam expulsos. Raramente tentam alguma interação mais desajeitada por meio da palavra escrita e, quando o fazem, os diálogos não se concluem, as línguas não batem, os interesses são unilaterais. Não se entendem, não se ouvem, mal se enxergam. Mas correm, desviando-se de quem quer que os atrapalhe ou interpele, naquele arrebatamento apressado que caracteriza nossas primeiras explorações e descobertas. Ninguém ali se conhece, mal se enxergam. Apenas habitam a mesma cidade de blocos onde todos os outros, assim como já acontece entre nós, representam sempre um mesmo papel: o de intangíveis jogadores.

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Quando preciso sair volto sempre aborrecido. São muitos os comércios que já se fecharam ao redor de casa. A portinha em que encomendava meu PF nos dias de maior pressa. A tradicional panificadora da esquina. Meu restaurante vegetariano favorito. O alfaiate onde eu mandava reformar meus paletós. A lojinha que me abastecia de chás, castanhas e frutas secas. Da janela do meu quarto, no entanto, continuo a avistar, ao longe, a silhueta robusta dos senhores aposentados que ainda jogam sua partidinha de tênis nas quadras ensolaradas do Círculo Militar.

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Recentemente alguém no meu prédio adquiriu a mania de gritar à janela, a qualquer hora do dia: “Oi, Brasil! Brasil, olá! Alô, Brasil!”. É uma voz feminina, jovial. Fazia tempo que eu não ouvia uma voz tão radiante. Não sou capaz de a identificar, não sei de que andar vem, mas não a julgo nem censuro, não sei se irônica, cínica ou inocente. O Brasil, contudo, não responde às saudações. Nem se importa. Dia desses, angustiado, até pensei em me manifestar, olá, oi, alô! E já abria a janela da área de serviço quando algo me deteve. Não sei o que foi, se uma revelação, uma tristeza, uma epifania ou uma raiva repentina. Apenas me dei conta de que aquilo talvez não fosse mais comigo.

* Tradução de Nissim Cohen para o livro Poemas da Cabana Montanhesa, de Saigyō, publicado pela editora Hedra.

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