A mentira

Li numa dessas várias newsletters que assino e raramente abro: na China, mais especificamente na região de Xiapu, foi inaugurado o que podemos chamar de “turismo de Instagram”. Ali, os moradores simulam que ainda levam uma vida rural, de tempos distantes, tudo para que os visitantes possam fotografar, postar nas redes sociais e receber seus joinhas.

É mentira, mas quem se importa?

Embora patético, mentir pra ganhar um like inocente é crime sem vítima. E se você mantém um perfil em qualquer rede social, tem seus esqueletos no armário. Arrisco dizer que já quis parecer mais feliz do que na verdade estava, quis soar mais esperto do que na verdade é, ou extremamente preocupado quando de fato mesmo não dava a mínima. Normal. Somos todos camundongos puxando a alavanca da endorfina.

Há pesquisas que indicam que uma pessoa comum pode contar de dez a cem mentiras num único dia. Quando você interage com um estranho, conta em média três mentiras nos primeiros dez minutos de conversa.

Eu minto, você mente, todo mundo mente, diria Gregory House, o médico misantropo da série televisiva que provavelmente não poderia ser feita hoje em dia.

A mentira é um traço evolutivo, diz quem entende desse riscado. Se falássemos sempre a verdade, brigaríamos tanto e com tanta gente que a vida se tornaria insuportável. A mentira é o alicerce da civilização.

Na maior parte do tempo, nossas mentiras não têm maiores consequências. Às vezes, são até mesmo nobres. Eu digo que está tudo bem pra quem pergunta como vão as coisas, mesmo se o mundo estiver desabando sobre minha cabeça, porque não vejo motivo pra chatear a pessoa. Quando alguém me dá uma notícia triste, finjo que sinto muito pra reconfortar o interlocutor, mesmo que eu não faça lá muita ideia do que aquele acontecimento signifique. Uma semana depois, finalmente respondo a mensagem que um amigo enviou pelo zap; pra que ele não se sinta menosprezado, invento que o celular estava com defeito ou qualquer outra desculpa igualmente esfarrapada.

“Vai ficar tudo bem”, você já disse pra alguém, mesmo sabendo que no final tudo o que restaria seria chuva de enxofre e o rugido das feras.

Eu lembro perfeitamente bem da primeira vez que menti. Uma bobagem, um clássico dos pivetes – fingi estar doente pra não ir à escola –, mas que me abriu um mundo de possibilidades. De repente, a realidade poderia ser o que eu quisesse que ela fosse.

É claro, com o tempo a gente aprende que nem sempre funciona exatamente assim. “Nós somos o que fingimos ser”, escreveu Kurt Vonnegut, que, caso você não tenha notado, é um dos preferidos aqui da casa. “Portanto, muito cuidado com o que você finge ser.”

Quando a mentira sai de controle, no entanto, pessoas morrem. Na China do delírio do Grande Salto Adiante, o Partido Comunista estabeleceu metas absolutamente inalcançáveis de produção agrícola. Nenhum chefe de província, no entanto, queria fazer má figura diante do camarada Mao. Eles mentiam, e garantiam que os objetivos estavam sendo até mesmo superados. As requisições de alimentos do Estado aumentavam, a fim de financiar uma rápida industrialização, e o resultado é que no campo dezenas de milhões morreram de fome e exaustão.

Quando a mentira sai de controle, pessoas morrem, eu disse. Assisto aos depoimentos na CPI da Covid-19 vacilando entre uma raiva inaudita e aquela paz que só consegue obter quem sabe que tudo foi por água abaixo. Não me importo por estar diante de mentirosos, mas de assassinos. Mentirosos que preferiram sustentar as próprias mentiras a evitar uma tragédia.

Todos muito parecidos com aquilo que fingem odiar.

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