A crônica não mata – Parte 18

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Já há algum tempo aprendi que é melhor não descrever as pessoas muito belas. Basta que digamos, por exemplo: era uma mulher bonita, um homem deslumbrante, e está explicado. Que o leitor se dê ao trabalho mental de erigir a seu gosto o corpo perfeito, a boca ideal, um rosto humano em que nada o desagrade. Esmiuçar as características físicas de determinada personagem, pintar seus cabelos, seus olhos, sua pele, em geral só nos expõe à descrença de quem nos lê. Hoje, portanto, na esperança de que acreditem em mim, direi apenas que, dia desses, a moça mais linda que já vi caminhava, quase ao meu lado, pela Rua Padre Antônio. Sem máscara.

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Ela era muito jovem e alta. Andava bem, com pernas sobre-humanas, como uma autoridade no assunto, embora não parecesse movida por aquele artificialismo comum às passarelas, fruto de cruéis adestramentos e concebido para as marchas exclusivamente planas, irreais. Não, muito pelo contrário: a moça caminhava como quem sobe uma montanha, rumo a um platô ensolarado. E eu subia junto.

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Caminhamos, eu na frente e ela atrás, por cerca de três quadras. A moça vinha conversando ao celular com uma boa amiga. Sua voz, porém, era feia, mal emitida, e seu modo de falar, desleixado, ainda que compensasse tais defeitos com uma animação invulgar. O assunto era banal: as aulas de direção na autoescola e a proximidade de sua primeira prova prática. O que mais a empolgava, no entanto, era a perspectiva de, no dia seguinte, realizar o seu grande sonho: dirigir na BR.

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A humanidade se define, em parte, pela rica diversidade de seus sonhos. Conheci um menino que sonhava em ser padeiro. Já escrevi sobre ele, anos atrás. Todos os seus amigos sonhavam com a fama e a posteridade. Queriam ser jogadores de futebol, gamers, artistas de tevê, atores de teatro, MCs, políticos, ativistas. Ele só queria fazer pão. Seu sonho, de certa forma, parecia descomplicado, fácil de realizar. Mas não. O menino ainda não chegou lá. Às vezes ser padeiro é quase tão inviável quanto ser presidente da república. Mas ouvi dizer que o cara continua no páreo. Que já aprendeu a dirigir, que deixou crescer um bigode, que arranjou uma namorada e um emprego de segurança. São boas notícias, apesar de tudo.

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Imaginei a moça mais linda do mundo dentro de um ônibus metropolitano, ainda criança, e depois já adolescente, moradora da Caximba, ou de Fazenda Rio Grande, ou de Mandirituba, vindo sozinha ou com a mãe ao centro de Curitiba, dia após dia, vendo a vida se esfarelar nos engarrafamentos da Régis Bittencourt, os meninos lá fora mergulhando de cabeça nas cavas do Iguaçu, os areais se diluindo ao longe, levados pelo tempo e pela ventania, e um futuro de condomínios e loteamentos se delineando às pressas, numa paisagem inesperadamente árida. Um atrás do outro, automóveis pilotados por mulheres vão ultrapassando sem esforço o ônibus da menina bonita e sonhadora à janela. Ela olha para eles e pisa fundo, pisa fundo, pisa fundo.

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Pelas ruas do Centro vejo cada vez mais carros amassados. No elevador do meu prédio leio o anúncio de uma seguradora, naquele tom de torta benevolência que me lembra o dos planos de saúde: Aqui, o seu veículo com mais de cinco anos é bem-vindo!

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Sábado à tarde, no Largo da Ordem, multidões desmascaradas tomam chope e se refestelam ao redor do Cavalo Babão. Passo por ali com minha caçula, arrependido por não ter escolhido um percurso menos tumultuado para o nosso passeio. De repente uma briga irrompe entre dois homens de meia-idade, bem perto de nós. Um deles é carrinheiro, o outro, turista. Não partem para os socos, apenas gritam. O turista, contudo, grita mais e mais alto, pois se julga o mais ofendido. É esse o objeto de sua disputa. Segundo ele, seu oponente teria ultrapassado todos os limites da correta arguição ao lhe apontar, ereto e intimidante, o dedo indicador contra o rosto barbado. Ninguém me aponta o dedo, gritava o turista. Nem meu pai me aponta o dedo, esbravejava, quem é você pra me apontar o dedo? O carrinheiro não sabia o que responder e talvez nem soubesse de fato quem era, e por isso calou-se, rendendo-se à fúria do turista, que então o mandou enfiar o dedo aqui e ali, para depois cheirá-lo e tornar a metê-lo não sei onde e nem com que propósitos. O dedo se tornou, por assim dizer, a estrela de seu discurso, a vedete daquele espetáculo. E de tanto gritar, o turista (bêbado, digamos a verdade) começou a espumar feito um cavalo que atravessasse um deserto, até que parte da espuma branca que produzia se agarrou à sua barba preta, formando, a partir de seu queixo, longas e estranhas estalactites. Impressionado, o carrinheiro achou melhor permanecer calado e ir embora, puxando seu riquixá de papel. O turista, todavia, continuou a discursar, erguendo, ele próprio, o indicador para o céu, acusando Deus de haver enviado contra a sua pessoa, e sem que o fizesse por merecer, mais um entre tantos e tão graves vitupérios. Pobre homem.

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Mas o que é que há num mero dedo indicador que vá ser capaz de desequilibrar uma discussão a esse ponto, que possa fazer colapsar um homem crescido e civilizado? Tradição, mito, trauma? Câmara Cascudo sugeriu que o dedo em riste seria “um vestígio de aceno religioso em um ritual acusativo”. “Todas as divindades do Castigo e da Vingança”, escreveu ele, “fixavam o acusado designando-o com o dedo indicador, in digitu, tornando-o o indigitado”. E assim concluiu, com fina resignação: “As Deusas morreram, mas o dedo ficou”.

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Contam que Martim de Bulhões, o pai de Santo Antônio, certa vez, em Lisboa, foi acusado de matar um homem. Desconheço as minúcias do episódio. Motivação, arma do crime, não me perguntem. Só li que, durante o velório da vítima, surgiu o santo em pessoa (ou em espírito, de acordo com fontes mais entusiasmadas), na intenção de tirar a limpo aquela história. Garante a crônica hagiográfica que Antônio assim perguntou ao defunto: Quem te matou? Ao que o morto teria respondido com um gesto breve, mas incontroverso. Soerguendo-se no caixão, apontou o indicador para um cidadão ali presente, seu verdadeiro assassino (há quem diga, entretanto, que o sinal tenha sido um ligeiro meneio de cabeça). Em seguida, finalmente vingado, o corpo voltou a se deitar, retornando a seu perpétuo e merecido sono de justiça. E caso encerrado! Milagre, exclamaram todos, milagre! Não duvido. Mas também não posso deixar de assinalar que o milagre ocorreu em favor do santo e de seu pai. Se Antônio tinha mesmo o poder de resgatar da morte uma alma a fim de fazê-la reanimar o próprio cadáver, por que não poderia, como um titereiro, instá-la a mentir em proveito de sua família, apontando o dedo para onde quer que o santo desejasse? Sim, até mesmo os milagres, como os crimes, podem ter um móvel oculto, uma causa particular, um estímulo secretamente amoroso.

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Fazia tempo que eu não via tanto lixo espalhado pelo Centro. Não que os garis estejam trabalhando menos ou que as pessoas estejam mais relaxadas. Nada disso. Mas é que tenho visto gente, em geral à noite, assaltando os sacos plásticos diante dos prédios da região, atrás de comida ou de qualquer outro item que se possa reverter em ganhos, por mínimos que sejam. O resultado são estes extraordinários rastros de imundice e intimidades tornadas públicas, coletivas, incontornáveis, que hoje se veem pelas ruas. Registro aqui uma pequena relação de objetos que encontrei perto de minha casa, na última semana: cuecas gastas picotadas a tesoura; cotonetes sujos; marmitas de isopor ensopadas de molho; embrulhos do Burger King; cascas de laranja e restos de alface; caixas de pizza diversas; esponjas Scotch-Brite, verde-amarelas, reaproveitadas como papel higiênico; bilhetes escritos a mão (um recado de alguém dizendo à mãe que não voltaria para o almoço, uma nota de agradecimento de uma empresa a um cliente fiel); uma cartela vazia de Dorflex; uma caixinha de Frontal; inúmeras garrafas de vinho; latas de cerveja e refrigerante; máscaras descartáveis; vidrinhos de xarope; receitas médicas e guias da Unimed; sachês de comida para gato virados pelo avesso; envelopes e caixas da Amazon; três maços de Kent Blue, amassados.

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Dois versos de Pope traduzidos por Paulo Rónai: “Juízes com fome apressam-se a assinar a sentença/ Miseráveis são enforcados para que o júri possa ir jantar”.

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A crônica não mata. E a impotência do cronista, sua principal desvantagem em relação aos outros autores, consiste na peculiaridade de não poder simplesmente matar seus personagens quando bem entender. Sendo que também não lhe é possível salvá-los. Tais inconveniências, porém, acabam aproximando ainda mais o cronista de seus leitores. Juntos, vocês e eu, podemos apenas torcer por um final feliz, por uma piedosa reviravolta da fortuna, por um lance qualquer de beleza e arte. Ou, vá lá, pela morte de um vilão, pelo extermínio do mal, pela vitória da Nêmesis.

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Segundo Górki, Tolstói teria dito a ele e a Tchekhov que, a contar do momento em que um homem aprende a pensar, ele passa a pensar somente em sua própria morte. Mesmo quando está pensando na morte dos outros. Mesmo quando está pensando em qualquer outra coisa. Não sei se Górki disse a verdade ou se ouviu mal, se Tolstói realmente acreditava no que teria dito, se estava certo ou não, assim como também não sei o que Tchekhov poderia ter acrescentado a essa triste teoria. Não importa. Só digo é que, desde que dela tomei conhecimento, sempre me faço uma mesma pergunta: no que nós estamos pensando, afinal? Essa, aliás, reparem, é a mesma pergunta que nos faz, todos os dias, desavergonhadamente, o Facebook.      

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