Tem gente com fome

Apesar de muito novo – eu tinha seis anos –, fui eu quem saí para atender a porta, naquele comecinho de noite abafada no interior. Do outro lado do portãozinho, havia duas meninas mirradas, vestidas com simplicidade. Uma delas grunhiu algo entredentes e me mostrou uma panela vazia, que trazia nas mãos. Como não entendi nem o gesto nem suas palavras, irritadiça, a garota deu com o utensílio na minha cabeça. Chorei. Enquanto minha mãe acorria em meu socorro, os pais delas, que batiam à porta da casa de um vizinho, também apareceram, alarmados. Um pouco adiante, entendi o motivo daquelas visitas improváveis: a família pedia pelo que comer. A violência com que a garotinha me atacou tinha sido puro reflexo de quem não tinha nada no estômago. Havia um certo pavor indefinível em seus olhos fundos. Pavor de fome? Minha mãe voltou com a panela – a mesma com a qual eu tinha sido atingido – cheia de comida. Não me lembro se comeram ali à rua, mesmo, e se dispunham de pratos e talheres. 

Morávamos em uma casa simples, de bairro, em uma cidadezinha provinciana em que praticamente não se viam pessoas em situação de rua, de modo que aquela foi a primeira vez que tive ciência de ver alguém com fome – e a cena jamais saiu da minha memória. No ápice da infância, no entanto, eu não conseguia compreender o que estava por detrás daquele fenômeno. Por que aquela família não tinha comida em casa? Por que estavam na rua? Se uns comiam até em restaurantes, por que outros andavam com panelas em mãos, como se merecessem menos? Nas noites seguintes, aquelas crianças teriam o que comer ou correriam o risco de ter que dormir famintas? Fiquei tão impactado pelo episódio que não consegui sequer manifestar minhas angústias pueris aos meus pais. Toda vez que me deparo com alguém com fome, pareço ver nitidamente os olhos apavorados daquela menina.

Essas visagens têm sido tão comuns em um grau que seria impensável poucos anos atrás. Basta observar. Quando for ao mercado, fique de olho no vai-e-vém dos clientes. É desesperador o desalento angustiado com o qual pegam determinado produto nas mãos, olham o preço e devolvem na prateleira. Não é para menos. Como a alimentação de um mês pode caber no orçamento de quem vive de salário mínimo? Haja conta, haja imaginação. De substituição em substituição, talvez tenhamos chegado no limite do limite. Pudera, não é mesmo? Depois dos pés de galinha e dos “ossos de segunda”, o que viria? Não há quem não se sensibilize – excetuando-se, talvez, os investidores da Faria Lima e Paulo Guedes, que nem gente são.

Algumas das reportagens que fiz neste semestre para veículos nacionais versam sobre o tema – e é significativo que Curitiba, que até dois anos atrás era lembrada exclusivamente como “terra da Lava Jato”, agora também ilustre as manchetes nacionais em razão de moradores à beira da miséria. Tudo isso, apesar de a metrópole ostentar os melhores indicadores sociais entre capitais e às expensas dos supostos ares europeus da capital da província, cantados em verso e prosa pelo prefeito – aquele, mesmo, que num passado não tão distante disse vomitar com “cheiro de pobre”. Sim, a fome também está por aqui.

Para compor a minha reportagem mais recente sobre o tema – e publicada no site da revista piauí –, passei duas manhãs no Jardim Veneza, uma área de ocupação em que vivem pouco mais de 300 famílias. Pessoas que perderam o emprego e, consequentemente, não suportaram o peso do aluguel e da inflação galopante, em tempos de pandemia, cujos efeitos foram agravados pela inépcia do governo federal. Entre barracos de madeira e teto de zinco, vi gente que pedala cem quilômetros em um dia, entregando refeições para aplicativos de delivery, para tirar oitocentos reais no fim do mês e, bem ou mal, alimentar os filhos. Vi gente cozinhando a lenha, em buracos abertos no barranco. Vi gente que não sabia se teria o que comer no dia seguinte.

Enquanto sacolejava de volta para casa no ônibus, pus os fones no ouvido e sintonizei numa rádio no exato instante em que, após a introdução curta, Ney Matogrosso entrou com sua interpretação avassaladora dos versos de Solano Trindade: “Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome”. Repetição incômoda que se impôs como um dedo na ferida (perdoem o chichê). Eu, que considero ter desenvolvido ao longo desses anos mecanismos próprios para suportar os trancos ásperos da reportagem, não dei conta: coloquei os óculos escuros e chorei discretamente.

Naquele mesmo dia, fiel a seu conceito de governar – como se presidir o país se resumisse a ostentar aquela cara asquerosa a uma multidão fanatizada –, Bolsonaro se pôs a passear de moto. Como se o país não se esfacelasse, regredindo a patamares de décadas ou séculos atrás, com a pobreza voltando a assombrar mais e mais (13% da população estão em condições de pobreza extrema). Fome e miséria raramente são mencionados nos discursos do presidente, você já percebeu? “Mas o freio de ar todo autoritário/Manda o trem calar…”. Não nos calemos. Vá além do seu umbigo, perceba o entorno, veja a periferia: “Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome/Tem gente com fome”.

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