Sobre Camões

Cinco pombos descem juntos a Rua do Diário de Notícias. No passinho manco, a comitiva vem sem hesitar: sabe que não encontrará pessoas nem migalhas pelo caminho. Ora de um ângulo ora de outro, as cabecinhas mecânicas enquadram a rua deserta, melacolicamente ensolarada.

O céu azul-claro envolve a cidade adoecida como um lençol esterilizado.

Uma, duas, três… nove doídas badaladas: o sino da Igreja de São Roque agrava um silêncio mortal.

Os pombos passam pelo mercadinho de Nishan Singh. A porta verde está fechada. Até mesmo o incansável comerciante indiano isolou-se em casa. O pombo da frente faz uma pequena pausa, os outros obedecem. Parecem deixar que a imagem de Nishan – turbante roxo de sirkh, meio-riso de mercador milenar – embarque em sua memória. Feito isso, podem continuar em frente: Nishan está com eles.

Seguem-nos os olhos rancorosos de dona Napoleontina. Debruçada à janela, o indicador direito protegido por uma dedeira amarela, a velhinha engole tangerinas ao sol, protegida pelo avental puído das velhas submissas dos tempos de Salazar. Segura a fruta e um guardanapo de papel, com o qual às vezes enxuga a boquinha azeda. Seus cabelos brancos deveriam inspirar ternura, especialmente nestes dias lúgubres em que os mais velhos caem como moscas. Mas, impávida, Napoleontina destila seu amargor acusativo, mistura fel ao bagaço da tangerina que cospe na rua ao fim de cada gomo. Termina de comer, lança no ar as cascas e o guardanapo. Caem no chão sem estrondo, os pombos até dão um pulinho, mas não se detêm.

A pandemia afastou todos. Onde estão os alemães, franceses, brasileiros, russos, japoneses que comiam bacalhau sentados na rua, sob os toldos coloridos, amolecendo as almas frívolas com ginja e vinho? – parecem se perguntar os pombos.

– Voltaram todos para os seus países, para as suas casas, para o espelho torturante das intimidades forçadas – responde o olho de vidro das vitrines.

Os pombos diminuem o passo, dobram à esquerda na Travessa da Espera. Um deles olha para trás: terá visto o espectro de Ermelindo? Talvez sua figura sempre tão eloquente, menu nas mãos como vara de pescar turistas para o bar de tapas, tenha emitido um eco. Ermelindo usava uma velha boina italiana, falava meia dúzia de palavras em várias línguas e trabalhava doze horas por dia para ganhar uns trocos por fora. Dizem que, antes de fecharem o bar, mandaram o pobre para casa com febre… O pombo atrasado se vira ligeiro, apressa-se a alcançar os outros.

Agora marcham pela Rua do Norte, em direção à Praça Luís de Camões. Não olham para a papelaria do nepalês que vendia bilhetes de loteria (as pessoas trocaram compulsoriamente os sonhos de riqueza pelo medo). Ignoram os carros enluvados de pó (as pessoas fugiram do destino imediato).

No fim da rua, o mendigo que remexe no lixo e o cão esquelético ao seu lado compõem com eles uma irmandade de esquecidos.

Cruzam os trilhos da Rua do Loreto, por onde agora só passam elétricos vazios, conduzidos por motorneiros mascarados. O louco erudito do Cais Sodré subiu as ladeiras e está no centro da praça, agitando os braços magros, lançando perdigotos na barba apocalíptica:

– Se não morrerem de peste morrerão de soberba! A humanidade é um Titanic, submergirá com ela a cobiça e a indiferença!

Os pombos arrulham com o ceticismo dos velhos encatarrados. O que veio à frente alça voo, pousa sobre a cabeça de Camões. Do alto da estátua de uma das criaturas mais divinas que emergiu dos erros da civilização, olhos palpitantes de incerteza, examina a cidade de Lisboa: nada se move, nada visível se move. Deixa um comentário em branco na coroa de louros do poeta e ganha o céu.

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