Os lábios de Cyndi

Logo após o café da manhã fui andar pelas ruínas da fábrica de cortiça, na Quinta do Braamcamp. O silêncio decantado daquelas ruínas, em meio à paisagem agreste, me fala de outro mundo, me acalma. É um lugar plácido. Encontro poucas pessoas lá e, nesses tempos de peste, cruzar com alguém chega a ser um assombro.

E assim foi: não havia vivalma na Quinta. Sem ser visto, me permiti caminhar a esmo, buscando novos ângulos do que sobrou da construção. Diante do esqueleto de uma sala com lareira, fiquei na ponta dos pés e estiquei os braços para o céu. Uma flor roxa, minúscula, atraiu o meu olhar. Depois um braço de casaco que nadava sobre uma pilha de tijolos enluvados de limo. Temerariamente, entrei nas ruínas e, através de um grande buraco no telhado, vi a cortina de uma nuvem velar o azul.

Foi andando ao acaso que acabei por chegar à praia de Alburrica. Segui à beira do Tejo, pisando conchas e caramujos crocantes. Na curva da praia avistei uma adolescente. Estava diante das águas, de braços cruzados, o casaco amarrado na cintura. De longe, parecia embirrada, como se desse as costas para a terra. O vento drapeava-lhe as roupas, os cabelos. Convinha não quebrar seus devaneios com minha aproximação, sentei-me na areia para olhar o rio também. Um rapazinho surgiu do lado oposto da orla, mãos nos bolsos, chutando indolente os galhos apodrecidos que a maré trouxera. Percebi a expansão e concentração de seu corpo quando deparou a adolescente. Diminuiu o passo. Aproximou-se dela cabisbaixo. Fingiu se interessar pelo que ela olhava (as águas trêmulas da inquietação interna?, pensei). Remexeu a areia com bico do sapato, tirou uma das mãos do bolso, hesitante, estendeu-a em direção à garota. Ia lhe dizer algo quando a adolescente se virou e veio em minha direção. A timidez e a humilhação do rapazinho, desprezado, com a mão no ar, fizeram subir do fundo de mim o eco de um fervor perdido.  

Era 1978. Eu tinha catorze anos, fazia Eletrotécnica na Escola Técnica Federal do Paraná. Depois das aulas massacrantes, saíamos todos da escola apressados, excitados, com fome de almoço e ócio. Os de Eletrotécnica usavam guarda-pós azuis; os de Mecânica, verdes; os de Telecomunicações, cor de vinho, e assim por diante. Em meio a essa revoada colorida, eu andava duas quadras até o ponto do ônibus. Havia diversos garotos e garotas da escola na fila. Às vezes, entre eles, uma menina do curso de Decorações, de guarda-pó amarelo-escuro, uma aparição luminosa que me deixava turvo de desejo. Tinha cabelos castanho-claros, lisos, cortados um pouco abaixo da nuca. Era magra, pálida. Os olhos verdes pousavam nos outros com uma simpática condescendência de soberana. E abaixo do nariz quase translúcido, o fulcro dos meus sonhos diurnos: os lábios rosados, cuja delicada intumescência era um conjunto suntuoso de pequeninas almofadas. A borboletinha negra da volúpia já voava entre elas… O lábio de cima era arrebitado, ousado, o de baixo meio triste. Eu entrava no ônibus e esperava a garota se acomodar, para procurar uma perspectiva que me permitisse vê-la com discrição. Em geral ela se sentava e eu ficava em pé, recebendo os esbarrões da massa que atulhava a carroça barulhenta, aos solavancos de curvas e lombadas, ofendido de desejo por aquela boneca que falava sempre com uma amiga, inacessível em sua beleza superior. Para agravar a situação, usava tênis All Star e calças Levi’s, coisas de rico, o que aumentava o abismo entre nós.

Um dia soube algo sobre ela. Era filha de um missionário norte-americano e de uma brasileira. Quando o informante me revelou seu nome, soou como um sininho tibetano: Cyndi. Nome de boneca americana. Cyndi, eu repetia à noite na cama, Cyndi, eu sofria imaginando-a de mãos dadas na praia comigo, Cyndi, eu despia seu delicado biquíni, Cyndi! percutia na areia da cama meu corpo em doce agonia.

Por cerca de um ano, pendurado no ônibus como macaco, olhei através das grades Cyndy passar por minha jaula, indiferente. Até que um dia não suportei mais meus delírios onanistas. Ao entrar no ônibus, ocupei a mesma posição de voyeur. Mas fui me aproximando dela. Estava quase à sua frente quando Cyndi me deteve com um lampejante olhar de Medusa. Ajeitou os cabelinhos, voltou-se para a amiga:

– O que aquele Mário pensa que é? Só falei com ele por pena. Detesto menino loiro! Ainda mais sardento…

Afastei-me devagar. Eu era loiro e tinha sardas do nariz à testa, com respingos nas bochechas. Ela sabia disso. Sabia que eu a queria, e me transformou em pedra.

Olhei abatido pela janela do ônibus para a cidade sem encantos. Me sentia sujo, feio, tão desejável quanto um cão sarnento. Sardento. Decidi nunca mais pegar o mesmo ônibus que ela.

Não sabia então que era, no futuro, o rapazinho em Alburrica, todos os garotos e garotas em Alburricas de todos os tempos, olhando desolados o rabo belo e infame da fera que se afasta. Descobrindo a solidão que os define, do nascer do sol à sua esplêndida agonia.

A caminho de casa, lembrei-me que Borges mencionava um livro de sua biblioteca que jamais leria. Uma história que nunca teria nas mãos, talvez por isso mais fantástica do que todas as que já lera. Sim. A potência das coisas intocadas. Aquele guarda-pó amarelo-escuro. O lóbulo da orelha sob a linha trêmula dos cabelos. A dilatação sutil das narinas. Os lábios, os lábios de Cyndi!


Para ir além

O talho do Moreira

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