Lia – Capítulo 66

— E eu, como assim? E ela me disse, claro, porque foi você que disse isso!
E eu na horinha mesmo que ela falou lembrei perfeito da cena. Da coisa toda, todinha. A chuva, a mesa da cozinha. A memória me veio inteira, apesar de eu não ter mais pensado naquilo faz, sei lá, deve fazer uns 11, 12 anos que aquilo aconteceu.

— Sei. Mas o que é que tem?

— Como assim? O que tem é que isso tudo é muito maluco, né? Isso de a gente simplesmente não ter controle. Muito maluco e muito lindo, no fim de contas. Assim, você passa a vida com uma pessoa, ainda mais com uma criança, passa a vida inteira dela, enquanto ela por assim dizer se forma ali na tua frente, se transforma numa pessoa… E ela tá ali aprendendo. Você sabe disso. Com aquele olhão enorme de criança, bem aberto, vendo tudo, prestando atenção, aprendendo mesmo. A gente sabe disso. Todo mundo sabe. E você cuida. Você se atenta. Sempre que você consegue, sempre que você lembra, sempre que você não tá cansada demais pra ver de verdade o que tá bem na tua cara, você tenta lembrar. Que o que pra você é vida cansada, repetida, vida em ponto-morto de cada dia, pra aquela menina ali crescendo na tua frente é muito inédito, é tudo novo. É tudo tudo mesmo. A vida inteira que ela vai ali comendo com os olhos. E pode ser sempre definitivo. Cuidado com isso. E aí você passa anos da tua vida se arrependendo de ter dito aquela frase meia atravessada, naquele dia que o teu chefe também te disse uma coisa azeda e você chegou em casa emburrada e a coitada não tinha nada a ver com aquilo, claro. Mas ouviu. E você remói aquilo duro. Anos a fio. E de repente descobre que não, que ela simplesmente esqueceu a cena. Que aquilo nem ficou na cabeça dela por um mês, muitíssimo menos uma década, década e meia. Mas do outro dia, que tinha apagado da tua cabeça inteirinho, que nem parecia importante, que nem era nada… ah, mas desse ela lembra, e vem te falar com a maior naturalidade do mundo. Porque foi você que disse.

Ele sorri para o sorriso alheado dela.

— Ela lembrava, e ela guardou, e aquilo pra ela teve, sei lá, teve assim a força de um tipo de ensinamento. Aquilo virou semente dentro dela. Justo aquilo.

— E qual que era a frase, afinal?

— Que a vida às vezes é isso: café com bolinho.

— Sério?

— Sério.

Ele agora sorri aberto para o rosto dela.

— E é verdade. E eu mesma esqueço que é verdade. Mas ela lembrou. Ela lembrou pra mim e me deu isso de volta. Ontem ainda. Agorinha.

— Que bom, Lia.

— E no fundo eu tô só te dizendo isso porque é verdade, pra começo… E porque foi você.

— Eu o quê?

— Você que fez os bolinhos, aquele dia.

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