O senhor está bem?

Eu desço a ladeira no carrinho de rolimã. Mantenho os pés firmes na trave da direção, o corpo tremendo pelo impacto das rodas de aço na calçada cheia de emendas. Tenho a impressão de que todos me olham com inveja e admiração, sou o mais veloz e mais hábil dos pilotos de carrinho de rolimã do mundo, o barulho me excita, a vertigem me fascina e amedronta, a bunda dói sobre a tábua dura que seguro com firmeza, entro na curva, a traseira derrapa e o carrinho tomba – rolo nas lajes esfolando joelhos cotovelos ancas. Caio deitado na grama. Vejo o céu, humilhado, esmagado pela minha óbvia inabilidade. Demoro para me erguer, que pelo menos as pessoas pensem que a coisa foi séria, afinal eu andava mais rápido do que qualquer um. Quando me levanto, olho em volta: não há ninguém. Sem testemunhas, volto a ser pequeno, inexperiente, livre para errar.  Me sento no meio-fio para examinar os ferimentos. Não há nada grave, mas o cotovelo esquerdo arde muito. Instintivamente volto os olhos para minha casa: sei que ali sempre me salvarão dos perigos da rua, basta gritar. Vou tentar de novo. Subo a ladeira com o carrinho sob o braço, contra o sol. O dia é imenso. Estou no tempo e fora dele, sou um presente contínuo. Sou insciente, eterno.

– O senhor está bem?, me pergunta uma voz de mulher.

Percebo que estou parado na esquina, braços caídos, olhando para o chão. Ergo o rosto e vejo uma portuguesinha de meia-idade com um dachshund no colo. O cachorrinho e ela me encaram com a mesma curiosidade quase aflita nos olhos.

– Sim, sim, digo sorrindo. Está tudo bem.

– Pensei que estivesse a desmaiar…

Agradeço a ela, sigo meu caminho. Me viro para trás e a mulher ainda está me olhando.

Não é nada, minha senhora, direi dias mais tarde escrevendo uma crônica. É só a memória bagunçando a cartografia, misturando tempos e espaços. Veja só, eu descia esta ruazinha de paralalepípedos em que estamos, em Lisboa, a uma distância oceânica do sul do Brasil, e algo, talvez a luz suave nas pedras polidas pelos pneus, me fez lembrar das brincadeiras na rua Arapongas, em Porto Alegre, onde passei parte da infância há quase meio século. De tal modo, minha senhora, que ando pela Travessa da Queimada em 2019 e desemboco na rua Arapongas, em 1972. Depois, volto à Queimada, por onde ando para ir ao trabalho com este jeito dissimuladamente firme de um quase morto que leva aprisionado na memória o fantasma de um menino. O fantasma grita de alegria, um grito cristalino que se insurge sob o entulho dos anos, tento erguer os ombros mas sei que é só vaidade parecer forte, presente, útil. Ninguém chega a nenhuma grandeza depois de perder a vadiagem de uma criança.

Esta rua, mulher sem nome, minha estranha irmã, é o caminho apequenado pela grandeza de sofrer. É a estreita via entre vastos nadas povoados por vozes vãs, melancolias longas e o fumo do ódio, a fumaça do amor. Não me aperte ou julgue assim tão certa de saber quem você é na ignorância do seu ser. Somos iguais pelo menos nisso: olhamos o bico do sapato, a impermanência da rua e sabemos o tamanho da ilusão de ter. A senhora me desculpe, mas a sua curiosidade sobre mim é a minha curiosidade sobre o seu olhar, os seus braços e o seu cão. Como pode haver tão decantada pedra em tamanha solidão? Somos feitos de aço e vapor? A realidade não presta, só nos resta a imaginação?

Entrei num café, pedi um pastel de creme. A mulher atrás do balcão ligou uma tevê suspensa. Na RTP um repórter, diretamente do campo de batalha, falou sobre a ofensiva turca na fronteira com a Síria. Os homens em conflito e os entes mais ou menos fantásticos da memória subitamente me pareceram personagens do mesmo teatro rarefeito, matéria de um sonho vulgar que aguarda o despertar.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima