Jaci no céu

De trás do prédio vizinho, surge lento o disco perfeito, radiante. Lançado há bilhões de anos pelo remoto discóbolo, azula agora o céu estrelado, deita sobre o terraço sua gaze branca e fina.

Do outro lado do Tejo, revela o espectro ancestral do Parque Florestal de Monsanto.

Me ajeito na cadeira: alguma coisa clareia o avesso da vida.

Hoje à tarde, Rute me disse que foi por causa da lua cheia que aconteceram tantos pequenos acidentes na estrada para a praia. Acha que as pessoas ficam meio loucas nesta fase. Pode ser. Aristóteles pensava isto, e os cientistas não têm uma resposta conclusiva sobre o assunto. Diante de algumas evidências, falam em “atração gravitacional”, “campo magnético”, “coincidência de ritmos”.

Talvez Rute e Aristóteles estejam certos. Pode ser até que a gente fique com o instinto profético aguçado. Pois na volta da praia falamos de acidentes de motocicletas um pouco antes de vermos aquele cerco de policiais e bombeiros, a moto tombada no meio. Não sei, não sei dizer do que a lua no auge é capaz, mas estranhei agora há pouco o longo e caloroso abraço que meu filho mais novo me deu, quando foi dormir. Parecia que ia partir em viagem para um sonho longínquo. E aqui ao meu lado, Rute estava autoirônica de um modo intensamente agradável. As coisas engraçadas que falava de si, de seus atrapalhos ao longo do tempo, nos faziam rir e diluíam nossas culpas e defesas, a ponto de eu me sentir envolvido por uma humildade cósmica.

Não terá sido incomum pela manhã aquela bebê negra no mercadinho da chinesa, a calça arrebitada pela fralda, dando tchau para todos que estavam ali, até mesmo para abobrinhas, cenouras e latas de milho? Ninguém ficou indiferente, e sua despedida uniu as coisas animadas e inanimadas num único instante comum. É verdade que a chinesa logo disse “Plóximo!”, daquela forma robótica e encantadora, e o senhor à minha frente colocou bruscamente sobre o balcão o que tinha nas mãos, como se pedisse desculpas pela tolice daquele momento feliz. As coisas enfim seguiram seu curso, mas houve uma “falha”.

Lá na Costa da Caparica, o casal de velhos dentro da água gelada e revolta, em que quase ninguém entrava, estava transando. Estava sim. Abraçada ao pescoço do homem, a mulher de repente olhou para o céu, e seus cabelos grisalhos balançaram pendularmente ao vento, como o rabo de uma égua.

A bruxa está solta. Posso senti-la agora, sozinho em minha cadeira de preguiça sob esse lume lunático. Quisera fosse sempre assim, e as coisas saíssem de vez das planilhas, saltassem para fora da realidade adestrada. Quisera uma perpétua lua cheia, um farol trocista destinado a provocar acidentes de lógica nos lançasse de encontro às imprevisibilidades de um mar oculto, perigosamente intuitivo, amoroso, amoral.

Um após outro, por trilhos invisíveis no céu, os aviões vêm lá do sul piscando luzinhas, descrevem a mesma curva suave sobre a cidade e pousam no aeroporto. Meio adormecido, entrevejo a obra magna da bruxa. Homens aborrecidos abandonam seus carros para seguir um bebê que cumprimenta árvores e pombos atropelados. Amantes distraídos rolam nos gramados dos parques. Mulheres grávidas sobem em mastros para desfraldar uma bandeira em chamas…

– Pai.

Levo um ligeiro susto. O menino mais velho está no meio do terraço, de cuecas, com um cobertor sobre os ombros. Pergunto-lhe o que houve.

– Não consigo dormir.

– Algum motivo especial?

Ele se aproxima. Baixa os olhos, procura se lembrar de algo.

– Não sei o que foi.

– Você sonhou?

– Não sei.

– Está com fome?

– Acho que não.

Digo que se sente ao meu lado. E ficamos olhando a lua. Pouco a pouco ele adormece.

Pego o menino no colo, entro em casa. Levo-o para sua cama e me deito. No escuro, imantando pelas visões do dia, lembro que para os índios tupis-guaranis os astros eram deuses. A lua era Jaci. O sol, Guaraci. Não havia distância entre a natureza e o divino. Como não há nenhuma entre meu corpo e o sono em que, lentamente, afundo.

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