Daemon

Sobre um skate de rodas macias, só de bermudas e tênis vermelhos, o garoto desliza magrinho pela margem do Tejo. A brisa bagunça seus cabelos cacheados. E o sol lhe veste de bronze suave o torso nu.

Toca firme o chão com o pé direito; depois, ereto, em perfeito equilíbrio, deixa-se levar pelo prazer de voar. Nada lhe falta e – ele não sabe – nada jamais deveria lhe faltar. Melhor seria entrar assim na eternidade, sem camisa ou noção do mal que o cerca, voando desgrenhado pela manhã luminosa.

Sentado no banco de pedra, vejo-o abrir os braços enquanto acendo um cigarro. Olho o menino alado e solto áspera fumaça pelo nariz. Embora algo nos una, é quase fantasia lembrar que já fui um garoto como aquele. A distância que nos separa é um abismo insondável, onde tombaram, uma a uma, as alegrias da insciência, as ilações livres que o espanto emana, as forças cegas de um corpo que descobre e expande suas possibilidades. A distância que nos separa é o grito que não darei para o menino… que não me ouviria.

Ele some atrás da estação de barcos. Fico sem o daemon da sua beleza.

Gostaria de dizer-lhe (mas não diria) que não é culpa exclusiva minha, mesmo não sendo exclusivamente de ninguém: juntos, matamos o menino. O menino que surge e ressurge à nossa frente – matamos sempre. Herdamos o conhecimento, sabemos como fazê-lo.

O método é preciso.

Conspurcamos sua sexualidade lúdica com a função fabril da família; instilamos nele o tempo do dinheiro, constrangendo sua imaginação ao futuro; rimos de inventos, enciumados da criatividade perdida, e aos poucos o “desinventamos”. Contra sua visão inclusiva do jogo e do outro, criamos um minucioso sistema de pormenores práticos para envolvê-lo na construção de um cidadão sério, responsável, egoísta: vencedor. Contaminamos o menino com países, religiões, profissões, números, sobrenomes, diferenças de sexo, de classe, de raça, desenhamos em sua nuvem multiforme o mapa sombrio das fronteiras. Qualquer sentimento original de igualdade entre as pessoas é desmantelado para que lhe reste apenas uma revolta doméstica, pálida entre paredes. O amor que tem por alguma coisa pequena e infinita (um boneco de pano, uma árvore no quintal) é transformado na fome insaciável por novidades, na insatisfação excruciante que o faz consumir e ser consumido por aquilo que descarta.

Ah, menino, a gente não falha.

A coisa é feita por profissionais competentes, dedicados. Somos pais, professores, padres, pastores, chefes, políticos, gurus, cientistas, empresários, legisladores, químicos, policiais, médicos – não falta braço para desferir o golpe. E, graças ao diligente exército que temos para relegar o brilho transformador de seus olhos às trevas talhadas para um homem de bem, o menino morre um pouco por dia.

Ao fim, com melancólica ternura, guardamos numa estante seu boneco de pano.

Está feito.

Levanto-me do banco de pedra. Caminho até a margem do rio, ando pela ciclovia. Lá longe, ainda vejo o garoto magrinho do skate, a fundir-se com os prédios gloriosos da Praça do Comércio. Do glorioso comércio.

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