Lia – Capítulo 77

— Lembra, querida, quando você era pequena, que você conseguia acender a lâmpada só com a “força do pensamento”?

— Nossa. Lembro sim. Sabe que dia desses eu tava falando com a Lelê bem disso aí. Que coisa mais doida. Porque eu lembro que funcionava! Né? Ou que, sei lá, que funcionou uma vez, pelo menos. E eu fiquei super impressionada.

— Foi. Foi mesmo. Funcionou umas quatro vezes. A primeira foi que tinha acabado a luz mesmo. Naquela época acontecia direto. E uma hora, você era pequeninha, você enjoou, montou um beiço enorme e disse, acende, e a lâmpada acendeu mesmo. Na mesma hora. Você saiu dançando de contente, com uns olhões desse tamanho. E não abriu mais a boca. Ficou quietinha sobre isso tudo. Mas aí, dia seguinte, do meio do nada eu te via paradinha de frente pra parede. Olhando pra cima. Aqueles interruptores bem altos de antigamente. Tentando acender uma lâmpada apagada. Engraçado que você podia até estar se achando meio sobrenatural, mas não olhava pra lâmpada. Os teus superpoderes dependiam do interruptor.

— Mas então foi só essa vez. Do apagão? Porque eu lembrava diferente…

— Não. Teve outras. Você tentou milhões de vezes. Mas umas três ou quatro vezes funcionou. Sempre no interruptor da sala. Da sala da casa velha, lembra?

— Claro. Engraçado que eu só lembro é disso. De ficar de frente pra esse interruptor e conseguir fazer acender. Mas eu tentei nos outros também?

— Tentou. Tentou em tudo quanto era canto.

— Que história mais maluca…

— Não sei. A gente aprende umas coisas quando fica mais velha.

— Como assim?

— Lembra outra crença tua, uns anos depois, logo que a gente comprou um vídeo-cassete, usado?

— A coisa do pause?

— Isso. Que um dia você apertou pause pra ir, sei lá, pegar um bolinho pra comer, e de repente ficou olhando pra televisão e viu que a imagem que estava parada ali não era qualquer imagem. Parecia uma coisa linda. Significativa pro filme inteiro e bonita que só. Um quadro especial. E depois disso você foi reparando que, por mais que a gente estivesse vendo um filme banal qualquer, por mais que você apertasse o botão sem nem olhar pra tela, você sempre dava pause num momento lindo, numa cena especial, num quadro perfeito e denso, cheio de significado. Foi o teu segundo superpoder. Um talento especial. Você sempre conseguia achar o momento ideal pra dar pause. Sem nem tentar.

— Eu lembro disso. A gente ficava um tempão olhando as imagens e falando delas. Com medo de estragar a fita. Ou o aparelho. Nem lembro mais como que era.

— Isso. Bem isso.

— Mas que é que tem?

— Oi?

— O que é que isso tem a ver com as coisas que a gente aprende depois de velha?

— Ah… que não era talento. Que não era sorte. Que não era nada. Que no fundo qualquer cena de qualquer filme em qualquer segundo, congelada, examinada, é linda e é cheia de significado.

— …

— Qualquer momento. Qualquer coisa. É só prestar atenção, né? É só “dar pause”.

— Ah! Estraga-prazeres!

— Ahahaha. Pelo contrário, filha. Muito pelo contrário.

— Só falta agora você vir me dizer que eu não tinha de verdade o poder mágico de acender a lâmpada da sala com a força do pensamento!

— Ah, não. Isso era verdade. Verdade verdadeira.

— Ahahahaha.

— Não. Era verdade mesmo. Era só a tua vontade. O força, a intensidade da tua vontade. A força dos teus olhinhos apertados e do teu cérebro concentrado. Só que não no botão do interruptor. A vontade da gente não tem grandes poderes sobre a eletricidade. Mas tem sobre outras forças.

— Como assim?

— Tinha outro interruptor na sala. Escondido atrás da cristaleira. Bem ali onde eu ficava te olhando.

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