Atrás do cão

Resolvi dar uma volta para ver se encontrava na rua a palavra que me faltava em certo texto. Há horas eu a procurava em vão. Mas isso acontece, a palavra às vezes escapa pela janela e vai pousar no ramo de uma árvore, na cabeça de uma estátua, num banco de praça. Não é incomum que eu a encontre nos lugares mais imprevistos, como o banheiro de uma lanchonete ou entre os entulhos de um terreno baldio. O importante, para achá-la, é andar por aí distraído. A palavra arisca só surge diante de mim quando esqueci de procurá-la.

Na esquina de casa, vi um cão velho se arrastando por entre as agitações do posto de gasolina. Percebia-se logo que não era animal de estufa, desses que a gente vê por aí perdido do dono. Era vira-lata legítimo, com pedigree conquistado nos becos, como quase não se vê mais. Manco, pachorrento, andava à toa em busca de migalhas, ao mesmo tempo desconfiado e esperançoso. Uma de suas orelhas estava rasgada, o rabo fora amputado na ponta. Os pelos, que provavelmente haviam sido negros, estavam foscos de sujeira e velhice. Cicatrizes inscreviam no seu corpo a trama de uma história dolorida, feita de pedradas, pauladas, atropelamentos.

Decidi segui-lo de longe. Quem sabe aquele ser à deriva, acostumado a caminhos menos ortodoxos, me levasse às camadas mais fundas onde se esconde a fala impressentida.

O bichano desceu a rua devagar, sentou-se diante da porta de vidro do supermercado. As pessoas passavam por ele, indiferentes, até que uma menina acariciou sua cabeça. A mãe puxou-a pela mão, enojada, gritou com ela. Depois de um tempo, percebendo que dali não viria comida (não para ele), arrastou-se em direção ao Tejo. Mostrou toda sua experiência quando atravessou a avenida em frente ao rio, aguardando o momento em que não viesse carro algum. Então seguiu pela margem, naquele passinho de ancião alquebrado. Chegamos à estação de barcos. Enquanto a multidão saía e entrava pelas catracas, ele se sentou novamente. Alguém lhe jogou um salgadinho de pacote, alguém o obrigou a mover-se de lado. Acostumado à fome e ao desdém, o cão não se inquietava. O máximo que fazia era acompanhar com os olhos alguém que talvez se apiedasse dele, como mendigo treinado em capturar afetos.

Na lanchonete da estação, comprei um sanduíche de presunto. Deixei-o diante do cão. Com calma, ele catou o pão e percorreu o sombrio corredor que leva às ruínas da antiga estação de comboios do Barreiro. Quando chegou à gare destelhada, comeu tranquilo. Depois, num movimento de que eu o supunha incapaz, saltou da plataforma para os trilhos. Doeu-lhe um pouco a pata manca, mas ele logo se recuperou. De dormente em dormente, avançou então pela linha abandonada, cabisbaixo como um cavalo que arrasta cargas na memória.

Fiquei ali suspenso, perdido no cruzamento dos tempos, vendo o cão fundir-se à paisagem desértica. De onde você veio?, pensei. Das névoas da história? Não há mais cães de rua, hoje só existem pets. Me diga a verdade: você veio aqui farejar o futuro? Sacudir diante do meu nariz a cauda amputada do passado?

Me sentei na plataforma, olhei o céu através das lacunas do telhado. Não, o cão não trouxera o que eu procurava, mas… Tive um estalo: sim, ele tinha vindo me buscar! Queria me conduzir a algum lugar vago e remoto. Qual? Segui-o por mim adentro. Acompanhando os trilhos enferrujados, atravessei décadas no encalço do cão. De repente, num agradável deslumbre, percebi onde ele queria me levar: era o Capão Raso, na periferia da Curitiba gélida dos anos setenta. Eu tinha oito, nove anos. Passava as manhãs na escola (mas disso quase não lembro, só me ficaram os conflitos e os deveres, aquela simulação precoce da vida adulta). O que importava eram as tardes, o cão queria que eu revivesse a vadiagem das tardes…

Eram tardes altas, imensas. Logo depois do almoço, eu pegava minha bicicleta. Saía sem destino por ruas cada vez mais distantes de casa, afastando-me, um pouco apreensivo, do ninho de cuidados e intrigas da família. O mundo se expandia casa a casa, quadra a quadra, em toda parte surgiam ameaças e espantos, um louco, um carro incendiado, negras faíscas de andorinhas, a cerca de tábuas que escondia coloridos jogadores de futebol, o possível tarado anunciado por minha mãe, a bela garota de vestido branco atrás das grades do jardim, o enorme caminhão cujo motorista me causava inveja e assombro, pipas no céu controladas por meninos invisíveis, operários brutalizados pelo trabalho a caminho das madeireiras, bandos de garotos selvagens com pedras nas mãos, cheiro de mato, gasolina, carniça, madeira queimada por serras circulares, jasmim, rosas, calçadas molhadas, eu vestia o vento, a bicicleta me levava por imagens e sensações frescas, a bolha da criança se rompia ao toque dissoluto do mundo.

E havia os cães, os inumeráveis vira-latas, sozinhos, em matilhas ameaçadoras, pequenos, grandes, fortes, medrosos, raquíticos, simpáticos, capirotos hidrófobos, mortos nas valas, com sarna, atormentados pelas moscas, com o saco inchado, cegos, carentes, cães e cadelas saltando pelas ruas de saibro, fuçando nos lixos, copulando nas esquinas, presos um ao outro pelo pênis dilatado, capturados pelas carrocinhas para virar sabonete, cheirando-se os cus, brigando, lambendo feridas, mordendo pulgas, dormindo nos descampados feito guardiões espirituais do sol, criaturas do além-muro, livres, provocando em todos nós, como para-raios da tempestade humana, descargas de ódio e compaixão, de amor puro e instinto assassino.

Os cães… Eram os representantes amorais do instinto, soltos na estrutura racional da cidade, percorrendo sua lógica como furos, como falhas, eram janelas vivas para nossa própria animalidade sufocada.

“Os seus parceiros, eles sumiram”, digo ao meu amigo do posto de gasolina. “Ainda existem nos lugares mais pobres, mas antes andavam por toda cidade, mijavam nas árvores das praças, nadavam nos chafarizes, cochilavam nas marquises. O que foi feito está certo, abrigar os bichos, adotá-los, denunciar a violência. Mas ficou tudo tão… tão desoladamente humano.”

O meu amigo, porém, não me ouve. Já vai longe. Levou consigo a bicicleta, as ruas inaugurais, minha capa de vento, os vira-latas que povoaram minha infância, aquele menino que ia abandonando o menino pelo mapa cada vez mais amplo e indistinto de sua geografia.

Levanto-me da plataforma, limpo a calça suja de fuligem. Ouço os ecos dos meus passos pela estação vazia. O cão não me trouxe a palavra. Não há problema. Aquilo que deixou, o mastim divino, vai muito além do que eu possa escrever.

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