Cinquenta centavos de bombril

A voz lhe saiu vacilante, como se o homem sentisse vergonha do que dizia. “Me vê cinquenta centavos de bombril”, sussurrou, parado à porta da pequena mercearia. Era magérrimo, de faces encovadas, barba desgrenhada e olhos assustadiços. Vinha roto, enfiado em uma blusa de moletom, bermuda jeans e chinelo de dedo, que pouco deviam lhe valer naquela manhã fria e garoenta. Uma sombra de si mesmo. O dono do estabelecimento foi a uma das prateleiras e voltou com a metade de uma esponja de palha de aço. Maquinalmente, estendeu o chumaço com uma das mãos, enquanto recebia a moeda com a outra. Com os ombros encolhidos, como se pudesse se fazer invisível, o cliente deu meia-volta e avançou em direção ao outro lado da rua num trote rápido, embrenhando-se em um terreno sob uma ponte, às margens de um córrego.

A mercearia fica logo à entrada de uma comunidade, onde eu não dava as caras havia uns anos, desde antes da pandemia. Sempre que passo por perto, costumo me achegar para trocar dois dedos de prosa com o proprietário do armazenzinho, uma fonte das antigas. Trata-se de um desses tipos corretos, que fala de forma pausada, como quem quer se certificar de que vai ser compreendido, e que tem uma visão de quem analisa a própria vila por dentro. Ele discorria sobre como a inflação galopante vinha corroendo o orçamento das famílias da localidade, quando outro freguês parou na porta. “Me vê cinquenta centavos de bombril.” Um pouco adiante, surgiu mais um. Em vinte minutos, foram quatro: “Me vê cinquenta centavos de bombril.”

Não foi preciso que o dono da mercearia me explicasse. Desde o primeiro cliente, eu já tinha sacado o que se passava. Os usuários de crack colocam fragmentos de bombril sobre a pedra, na fornilha dos cachimbos improvisados, para facilitar a combustão. Mais que isso: o bombril também dá “barato”. Ah, como você sabe? Uns anos atrás, passei uma semana em um barraco – uma “toca de crack”, eles diziam – onde dependentes se revezavam, “estourando” pedra atrás de pedra. Agora, o meu assombro se dava pelo contingente de homens – todos com os mesmos olhos alertas – que, de quando em quando, acorriam à vendinha para comprar nacos de esponja de aço, no varejo do varejo. “Aquilo ali virou uma boca de fumo”, disse o comerciante, apontando o terreno do outro lado da rua.

Desde que fui à vila pela primeira vez, é claro, havia tráfico e consumo de drogas – como os há no Batel e nos countries clubs. Achei, no entanto, incomum  e significativo aquele movimento na rua de entrada da comunidade, à vista de quem tem olhos para ver. Pensava no negócio de meu amigo comerciante. Talvez aqueles vultos lhes afugentassem os clientes.

Qual o quê? “Se fosse dez anos atrás, as mães teriam medo de vir fazer suas compras ou de deixar seus filhos aqui na rua. Já se acostumaram. Hoje, ninguém liga”, disse-me o dono da mercearia, resignado. Como se comprovasse a tese, logo em seguida, uma menina de uns sete anos entrou com um dinheirinho na mão e comprou um pacote de bolachas, que abriu ali na frente, mesmo. Enquanto ela degustava candidamente o doce, outro figura chegou: “Me vê cinquenta centavos de bombril”.

Adiante, topei com outro velho conhecido da comunidade, que me contou uma história que me pareceu curiosa e emblemática. Um dos antigos “chefes” do tráfico local pagava mesada de R$ 3,5 mil para um pastor, a fim de que este “abençoasse e abrisse os caminhos do seu negócio”. De imediato, três pontos me chamaram a atenção: 1) a religiosidade do traficante evangélico; 2) a amplitude da “ética” do pastor, que encontrou respaldo eclesiástico para orar para o tráfico; 3) o fato de, mesmo supostamente contando com a intervenção do intermediário de deus, o traficante ter sido assassinado a tiros no fim do ano passado, pertinho do barracão onde funciona a igreja. 

No caminho de volta, pela janela do Uber, vi quatro adolescentes perfilados, com as mãos na cabeça e de frente para um muro, revistados por policiais – dois destes portavam fuzis. “Tem que tomar escracho, mesmo”, grunhiu o motorista. “Talvez fosse mais efetivo se este país lhes dessem as condições que preveem o Estatuto da Criança e do Adolescente”, respondi, mas já sem paciência de aprofundar meu argumento. Deixei pra lá. Quando cheguei em casa, as imagens todas ainda me impregnavam, feito cheiro de crack. Olha aí no que foi dar o proibicionismo. Está aí, para quem quiser ver. Enquanto a cada ano as drogas continuam firmes e fortes, vencendo a guerra contra as drogas, vultos se esgueiram com olhos ariscos, pedindo num sussurro: “Me vê cinquenta centavos em bombril”.

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