Amália Furiosa

Dizem que os portugueses são saudosos por natureza. Um império derrocado, barroco rococó. O fado é a própria expressão dessa tristeza, do amor impossível que não passou do bojador, qualquer coisa além mar não consumada.

Já a cumbia é uma dança de acasalamento originária dos indígenas do norte da Colômbia: a própria consumação do ato, uma espécie de aniquilamento sadio.

Os fins, por aquilo que não foi ou pela morte do que havia sido, os fins precisam de uma expurgação. Antes da catapulta, demandam os líquidos de que somos feitos. É preciso chorar e verter suor à terra para enterrá-los finalmente.

Chorar um fado. Dançar uma cumbia. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Foi assim que aconteceu.

Eu lhe disse que poderíamos encurtar a distância, nos encontrando na metade do caminho. Uma cidade aleatória qualquer, escolhida a dedo no mapa: Boiçucanga.

Ficava repetindo na boca, Boiçucanga, Boiçucanga, Boiçu… parecia que estava chupando uma manga felpuda, quase liquefeita. A língua tem dessas coisas. Escolhi a cidade que mais se assemelhava a imagem de um erotismo exótico. Boiçucanga, terra dos nossos ancestrais.

Cheguei com dois dias de antecedência para me habituar ao local e tentar dissimular o fato de que a ida a um lugar desconhecido não foi senão uma ousadia apaixonada. Vim antes para afirmar que sim, estou muito bem obrigada, embora sonhasse dia sim outro não com a possibilidade de andar lado a lado em compasso de dois.

Na beira-mar havia o bar dos nativos, um precário estabelecimento de madeira podre, pintado com tons de vermelho e rosa. Som de tambores dentro. Não era sonoridade caiçara de rabeca, mas uma percussão intensiva, algo muito latino.

O som dos tambores fazia ruído na minha cabeça. Sentada na areia, pensava em como seria sua chegada, ensaiava as histórias, queria lhe dizer coisas bonitas, palavras que marcam na carne, qualquer percepção que nunca antes alguém lhe havia dado.

O ritmo prosseguia, as pessoas iam adentrando no bar simplório, que abrigava um verdadeiro acontecimento.

–      Hoy vamos a tocar cumbia!

As pessoas dançavam com uma habilidade descomunal. Uma dança de dois onde não havia condução masculina, mas uma força mútua, pelve contra pelve. Cada vez que uma saia fazia seu giro, o chão de madeira ameaçava ceder um pouco.

Tirei o chinelo de areia, senti o tremor nos pés, que foram ganhando vida na medida em que me aproximava do centro .

Um homem me encostou no braço. Não era um pedido, mas um apelo. Coxa entre coxa, desníveis de altura, rodopios no ar. Não me faltava traquejo, não lhe faltava ousadia, estávamos assim, bem um para o outro, e no entanto, um homem é um homem desde os tempos imemoriais. Ele me disse qualquer coisa em espanhol incompreensível. Quando seu rosto suado encontrou meu pescoço, me retirei em um único impulso atravessado.

O amor estava marcado para o dia seguinte há pelo menos um mês no calendário.

Mas o amor não falha: tropeça. Envia suas mensagens por sinais enigmáticos, às vezes, se enuncia nas palavras que come.

“Não poderei ir. Haverá tempo.”

Não poderei. A pior conjugação possível para o verbo poder, esconde uma série de subterfúgios.

“Deixa estar. “

“Estou escangalhada.” “Foi só um descompasso.”

“Eu cruzei cento e cinquenta léguas.”

Às vezes acontece de um dar o passo e o outro não dar o chão. Nesse momento uma cumbia pode se dar, você pode sair rodopiando no ar em uma dança sem par.

Não, não é uma cumbia. É o fado mais triste do mundo. Uma Amália que cruzou distâncias para depois atear fogo nas pontes, sozinha em uma ilha engolida pelo mar. Amália Rodrigues cumbiera furiosa:

uma das vinte mil variações sobre o amor.

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