Os dançarinos elétricos

Como assídua frequentadora de manuais, tenho cá meus prediletos: os antigos, que nos falam de coisas hoje quem sabe inúteis e ensinadas por algum youtuber de 12 anos em 5 minutos bem editados, guardam suas pérolas. Ao alcance da minha mão, foi num deles, um manual de mágica, que encontrei a ilustração de uma experiência com eletricidade com papel, vidro e tecido. Ao lado da ilustração, a explicação quase científica de uma experiência para fazer papéis dançarem – e eu juro que não estou forçando a analogia. A primeira instrução aqui é: tenha dois livros à mão e uma placa de vidro. Os livros vão se manter fechados e só vão ser suporte para a placa, que é o que separa você dos seus bonecos. Do livro, também vem a segunda instrução, é dali que vêm as imagens: “Nós as recortamos (as figurinhas) de papéis de cores diferentes, o que lhes dará um aspecto bonito”.

A mágica acontece quando se dá a relação entre os humanos e os bonecos por meio da eletricidade produzida no experimento. Com um pano quente que se molda como uma boneca, atritado com bastante força no lado superior da placa de vidro, as figurinhas de papel ficam, de repente, em pé. Nas palavras do livro, quando você se afasta da placa de vidro, “elas são repelidas e caem, entrando numa dança engraçada e cheia de vida”, até ficarem estáticas novamente. “Parando com a fricção, o alegre bailado continua ainda durante algum tempo e, quando chega ao fim, basta apenas um leve toque com a mão na placa para que as figurinhas revivam.” O manual é didático, como um programa de tevê tem sido na última semana ao parodiar a clássica história de criação do mundo em sete dias. E, na mesma medida em que é didático a respeito de como não temos conseguido conversar, é assustador.

Um arsenal linguístico poderia recorrer à psicanálise ou a livros de teoria literária para defender a impossibilidade ficcional de se chegar à realidade tal qual o Big Brother Brasil nos apresentou nos últimos dias. Um ex-mórmon doutorando em Economia com a tese parada enquanto participa do reality? Uma graduada em Letras e Direito que não consegue estabelecer diálogos com metade da casa? Um poeta de batalha de rima como favorito? A armadilha da franqueza não é o suficiente para a convivência pacífica e interessante num confinamento dentro do confinamento. Ingenuidade, empatia e cautela têm sido artigos esfumados no rascunho do personagem que cada fã-clube desenhou para os seus próprios bonecos da casa e coisas que, faça curso, faça sol, requerem um pouquinho menos de moldura. A performance da autenticidade genuína – sim, o BBB me obrigou a juntar essas duas palavras nesse pleonasmo horroroso – e da suposta intimidade com seus adversários, fez com que o gramado tão verdinho na tela da tevê formigasse. Os participantes performaram tanto que não conseguiram mais coreografar a espontaneidade ensaiada antes do Era uma vez. O progresso de tanta coisa aqui fora se mostrou insuficiente para o componente mais difícil de quem faz ficção: o diálogo. E o entretenimento violento, a gente constatou, não é feito de podcasts sobre assassinatos, mas a junção de um elenco feito de papéis diferentes, todos vistos pela placa de vidro: uma tela que talvez guarde mais pontes para prever nossas relações do futuro pós-pandemia do que a própria literatura feita entre quatro paredes que não se reserva ao direito de quebrar algumas delas. 

Nesses não tão novos moldes do Show de Truman, o suposto true man, enganado por todos, mas verdadeiro, autêntico, porque ensaiou pra ser, segue a jornada previsível que separa a realidade da ficção. A autenticidade, tenho suspeitado, se dá na linguagem encurralada, que o dicionário me lembra, é aquilo que está ou é ladeado, cercado, perseguido por alguém ou alguma coisa. Quem empreende jornadas em programas de televisão em busca de uma verdade sobre si mesmo – a nova tendência do autoconhecimento de palco – pode ter se esquecido daquelas premissas incontornáveis, não catalogadas no repertório pronto, que nos moldam desde sempre. Sim, a negação de narrativas modelares e nosso lugar garantido no pódio de torcedores não nos exime de performar uma a uma das atitudes que temos condenado nos dançarinos elétricos. O mundo de Boninho tingiu as aspas todas de rubricas indecifráveis. Qualquer um poderia tê-las assinalado. 

Hipotecar a própria intimidade requer a coragem de quem sabe que consegue se ver do avesso depois de seis dias de escorregões microfonados – e eu que não tinha nem tevê até dia desses cá estou pensando em hipóteses narrativas para além da escrita em que trabalho diariamente, criando mundos pra além do meu, do seu, do nosso umbigo. Como se a própria literatura não fosse confinamento suficiente, me mudei para o twitter faz sete dias. E, no sétimo dia, a gente sabe, amém, amém!, Deus tomou um rivotril e não descansou. Pudera, difícil descansar com as luzes acesas e a humanidade alvoroçada. Nenhuma narrativa tem durado mais do que 24h e os tutoriais, arquétipos, estereótipos foram todos BBB abaixo. Na dúvida, acabei de encomendar um outro manual: 775 dicas para acabar com os problemas do lar de A a Z. Ainda não sei se ele segue ao lado dos livretos sobre truques e mágica ou faz casa na prateleira de ficção.


Para ir além

Foi a jornada do herói que nos trouxe até aqui

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