Foi a jornada do herói que nos trouxe até aqui

Faz algum tempo que a gente tem acompanhado um rebranding do herói. Ele tá tão repaginado que não ocupa mais nem uma dezena de páginas – conseguiu quebrar a quarta parede da página e sair do livro. Tá aí nas redes sociais, como de hábito, a figura eleita, com milhões de seguidores e o sucesso como sobrenome. Ele veio do nada, do zero. Nem se o herói fosse de proveta ele viria do nada. Lavoisier, corre aqui. Ele tatua o nome da cidade, funda uma ONG e elimina muitos haters – que é o novo nome para inimigo – no caminho. A arma usada? O textão – o que significa que, basicamente, o herói de hoje é o herói do passado só que alfabetizado e com conta no Instagram. A gente aposta também as fichas nos novos heróis, os heróis em potencial. Podem até fazer o ENEM – ainda que com medo de sair de casa, mas são as condições externas, é um chamado do Ministério da Educação, é a única possibilidade de uma geração e tal. É o tipo que atravessará uma horda de pessoas no meio de uma pandemia com a caneta na mão, passará horas empunhando a tal espada em cima de uma mesa ao lado de outros e chegará em casa ileso – descorongado. Como se fosse possível, é tudo efeito especial. Em poucos dias, saberemos que os mentores dele fracassaram por um ano porque nunca foi possível garantir a vitória do herói estimulando encontros telepáticos para a mentoria. O problema é o sinal wi-fi – e, é claro, a desigualdade social, a falta de acesso a equipamento que garanta equidade de ensino a todos e o investimento parco em educação no país. Nada de muito significativo para uma narrativa de Instagram. Hashtag eu consegui. Conseguiu o quê? O cavalo de Troia tá diferente nestes tempos, né? São os nossos que trazem pra dentro de casa o próprio vírus. Mas o assunto não é esse. É o herói, esse lindo, que só existe porque ainda não inventamos um governo que funcione. Ou talvez tenhamos inventado e as pessoas achem que é ficção fabular – parece que até comem criancinhas. Vou apostar nessa hipótese. 

Quem veio primeiro? A jornada do herói ou o herói? Não vou botar na conta do Campbell ou do Vogler porque quero apostar que a dose imperialista ou instrucional tenha sido também falta de interpretação de texto. Nem todo livro é um manual, nem mesmo os que dizem que são. O desavisado, boa parte das vezes, é o leitor. Discordo, digo eu mesma, acessando o âmago da feminista que existe em mim e clamando para que a gente diga, sim, as narrativas de herói estão um saco, eu digo sim. O senhor-todo-mundo, como diria Eric Landowski, é sempre quem aproveita realmente a festa. As festas não estavam proibidas, aliás? Faça chuva, faça sol, com vírus ou sem vírus, ele tá sempre ali pronto pra voltar pra casa vitorioso. Mas que casa? Nem todo herói tem casa, quanto mais uma pra qual voltar. Vai que, numa hipótese, ele tenha conseguido sair. Na volta, de cortesia, ele pode ganhar algumas recompensas pela empreitada. Um castelo, uma tele-sena que ele nem lembrava que ainda existia ou uma mulher, que apesar da tentação, é um bom prêmio por bom comportamento. Mas é claro que o problema não é dos escritores desses manuais, imagina. A recompensa também pode ser um homem de sunga e joias pelo corpo agregando véus. Não é à toa que harém se refere a um conjunto independente de aposentos destinados a concubinas. Os dicionários não mencionam que podem ser homens à disposição de uma imperatriz, mas os autores devem ter esquecido, claro. 

Em geral, ele chega cansado – viagem longa, sa’com’é, burnout é o novo nome. Se a gente tá falando de um herói meia-idade, frustrado e desempregado, a esperança não acabou. A sorte dele é, quase desistindo, encontrar o mentor, o coach – o cara que é realista, sabe que não vai virar herói porque preferiu ficar de assistente do jogo. Afinal, é ele quem garante a performance – essa palavra que chegou intacta à língua brasileira e assim ficou – sem acento. É que o coach não cansa, ele tá sempre em pé. O suprassumo é quando ele é coach de coaches – um herói de quem constrói heróis. Quer posição mais heroica? É ele que abastece o nosso protagonista de um compêndio de citações motivadoras e com gabarito. É como se esse herói ganhasse, na década de 90, um álbum pra guardar as trinta e seis poses do filme da Kodak, com legendas intercambiáveis. Uma espécie de quebra-cabeças do álbum de recordação – que, além de tudo, ainda serve como uma nova Bíblia. Sabe aquela coisa de abrir no aleatório e ver o que deus quer te dizer no dia? A Bíbliaout, muita página, o herói demora pra aparecer e, de quebra, encerra tudo com apocalipse. Xô, bad vibes, diz o jovem místico. 

Sei que falta pouco pro fim do mundo, não é hora de bagunçar o jogo, mas, pro nosso azar, o herói precisa acabar e a gente precisa arranjar um outro jeito de terminar essa história. Vamos dar uma folga. Ele tá cansado, né?, anos de empreendedorismo, sem contratos fixos e, muito menos, férias. É muito tempo carregando a história nas costas. Não é à toa que virou um troglodita, nada fácil lidar com a frustração do erro de gravação antes da hora. É só tropeço, uma hora basta. Estamos acostumados a ver erro de gravação só depois de conferir o final feliz. Empurramos até aqui com a barriga uma série de longa-metragens e documentários sacralizadores de personalidades que chegaram lá. E, em geral, é a graça, o nome próprio, tão forte que não precisa de sobrenome, que eleva a narrativa ao quadrado. Não aceitamos mais personagens chochos, sem graça. A falta de graça é a falta de nome. E nome é ciência que o brasileiro não coloca no modo randômico. É apoteótico que sejamos governados por um Messias e que tenhamos tido um presidente interino que compartilhasse do nome Lula, um outro presidente. A mulher mais rica do país carrega o nome da personagem brasileira que homenageia Lolita – criada por quem foi exemplo pra muita narrativa de herói de meia-idade por aí. Há exceções? Sempre. O herói é a própria exceção. Num regime de exceção, numa crise sanitária que é a própria exceção, é recomendável ler a bula. Outro manual, voilá.

Mas se você chegou até aqui esperando uma proposta de intervenção, lá vai. Para 2021, eu apostaria em roteiros sem clímax: o advento do herói foi uma catástrofe e a matrix resolveu que a narrativa sobre a vida na Terra deveria ser reprogramada. Estão com medo de ser isso o que sobra no pen-drive que vai na cápsula do tempo. Um ou outro habitante do futuro pode se questionar: mas se eles eram tão incríveis como não derrotaram um vírus? Era só ficar em casa. A narrativa universal nos conta que a gente sabe emular bem a vida lá fora – não faltam tutoriais de como arrumar uma mala, uma legião de youtubers se especializou em te contar como empreender sua própria epopeia. O problema tá no óbvio. Nascer, se desenvolver, procriar se for o caso, morrer sem que isso tenha sido culpa de um governo. Uma coisa atrás da outra. Complicado este negócio de morrer todo ano, o brasileiro é cardíaco, não aguenta mais. No mundo comum do futuro, quem sabe, um alimento que não precise ser colhido num supermercado contaminado, a saúde mental em dia, uma sociedade funcional. Se tudo der certo, uma viagem de vez em quando. Sem grandes distrações. Paulo Leminski que me desculpe, mas é atentos e não distraídos que talvez cheguemos ao final da nossa própria história – mesmo que a gente não vença. Chatice isso de bem e mal. Aliás, soube que abriu um edital esses dias em busca de um argumento convincente – o que pode ser o blockbuster da era de aquário. É a nossa chance. Quer dizer, não sei. Será? Sobreviveremos sem aplausos? Talvez eu precise ler um pouco mais antes. A redenção desse novo herói deve ser em algo parecida com uma louça limpa e boletos em dia. E aí quem sabe haja espaço para que uma ou outra heroína tenha coragem de sair de casa. E os livros que comprei ano passado continuam ali, me encarando da estante.

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