À sombra de Salazar

Espremido entre a parede lateral e o muro, sigo pelo corredor até chegar aos fundos do prédio. Paro diante da porta metálica azul. Está entreaberta. Passo reverente por ela, fecho-a. Com um estalido frouxo da velha lingueta, a porta trava.

Estou no minimundo das irmãs octogenárias.

Me curvo um pouco. Ando devagar roçando os cabelos pelas telhas translúcidas. Preciso me curvar ainda mais para descer a escadinha de lajotas impecavelmente enceradas e cruzar a porta liliputiana da sala.  

Lá dentro, passo os olhos pelo vasinho de vidro cinzelado, de onde eclode em silêncio uma coroa de rosas, dálias e girassóis de plástico, hirtos sobre a neve perpétua da toalha de crochê; pelas fotos da família, que vão do sépia dos mortos ao colorido ameaçado pelo zinabre dos vivos; pelas estantes com partes fechadas e abertas, onde dormem esquecidas porcelanas domingueiras, santos e anjos baratos comprados em feiras extintas, o dicionário grave e inútil que escureceu entre criaturas a quem não ensinaram a ler. Aproximo-me da bíblia aberta com a imagem de Jesus segurando alegoricamente o pão e o vinho, a olhar, com esmaecida contrição, para o alto reino do Pai.

Tiro o casaco, deito-o com cuidado sobre o sofá de riscas marrons, tão frágil e tão conservado – é que as visitas quase não se sentam nele, posto que há uma cozinha logo ali na qual a vida borbulha em panelas e palavras de duas pequeninas portuguesas.

Com dois passos estou entre elas, acalmado pela aura suave de seus cabelos brancos.

– Olá, Maria Teresa. Olá, Esmeralda.

Esmeralda, revolvendo com a colher de pau o cozido, me oferece de viés um riso atrapalhado. Maria Teresa seca as mãos no pano de prato e me olha, firme e gentil:

– Então, como está o Marcos?

Ambas têm a altura de uma criança de dez anos. E a cozinha, embora pequena, abriga a mesa redonda, quatro cadeiras de espaldar alto, o fogão embutido em um nicho de azulejos, o armário de fórmica, a poltrona e a cama de Esmeralda, a máquina de costura de Maria Teresa, tudo entre mil bibelôs delicados, como o burrinho de feltro com o crucifixo pendurado no pescoço que evito derrubar do prego na parede. De modo que me movo lentamente, em busca de um lugar que as liberte de meu corpanzil, até que Maria Teresa pede que me sente no “meu lugar”. Obedeço. Ajeito-me ali, de costas para a tevê.

Ela então me serve de vinho, azeitonas, queijo, pão. É o último dia do ano e, enquanto levanto a máscara para mordiscar o queijo, ouço o repórter dizer na tevê que haverá recolher obrigatório às vinte e três horas. Maria Teresa me observa.

– Tire a máscara. Isto é um seca!

Explico mais uma vez que elas são a ponta do iceberg do grupo de risco. As duas sorriem, chateadas. As irmãs detestam as máscaras. Esmeralda quase não vai à rua porque se sente sufocada com o apetrecho.

Durante o almoço, em meio aos vapores do cozido à portuguesa, a conversa recai sobre os tempos de Salazar. Elas me contam que a fome era tanta que tinham uma ficha metálica com um triângulo vazado no meio. De posse desta ficha podiam buscar comida “na tropa” (o exército) ou na Santa Casa de Misericórdia. Uma vez por ano recebiam do governo uma roupa padrão, que deixava todas as mulheres iguais, feito clones de autômatos do sistema.

Nesse tempo eram amigas da filha de um vizinho melhor de vida. Era uma garota muito gentil e educada, me contam. Ficaram sabendo depois, quando o fascismo caiu e o vizinho e sua filha sumiram, que o sujeito era espião de Salazar. Denunciava aquela gente pobre e famélica quando esboçava alguma revolta ou comportamento estranho.

– O 25 de abril foi muito bom. Antes não tínhamos direito a nada. Para ter conta no banco era preciso o marido autorizar. Os homens faziam o que queriam, éramos umas sacrificadas. O 25 de abril foi muito bom, diz Maria Teresa.

– Foi muito bom, repete Esmeralda, sempre mais casmurra.

Maria olha para a irmã, depois para mim:

– Ela não fala nada. Fala mais com a televisão.

Fico sabendo, pela irmã de língua solta, que Esmeralda era valente quando jovem. A um patrão que tentou tocar em seu corpo na cozinha do restaurante onde trabalhava, apontou uma faca, pôs pra correr. Sei que sofreram assédios de todo tipo, talvez violações, até que lá pelos anos setenta decidiram viver sem homens, só as duas, nesta maquete de resistência rendada em que mordisco agora um chouriço. A comida é sublime, o vinho é bom, a toalha de mesa rescende a engomada escravidão e, no entanto, alguma paz emana dessas duas meninas que sobreviveram aos horrores da engrenagem de um moinho infernal de homens.

Saindo de seu mutismo, Esmeralda me conta que um dia foi entregar uma calça, costurada por Maria, a um comerciante instalado no Terreiro do Paço. Ele era indecente com Maria, mas temia Esmeralda, por isso era esta quem fazia a entrega. Ao chegar ao Terreiro, Esmeralda viu uma multidão ocupando eufórica a praça, cercada de soldados imóveis. Deu uma volta, esgueirou-se sob as marquises. Entregou o trabalho e voltou para casa. Não sabia o que se passava com o seu povo. Mexo-me na cadeira:

– O que era aquilo?

– Era a Revolução dos Cravos, suspira, olhando o prato, fazendo um bico de conformação pelos fatos inalcançados.

Ao fim da tarde, me despeço. Maria Teresa me dá meio coelho, um pedaço de bolo. Há algo fundo em suas pupilas, algo indestrutível que cautelosamente me acolhe. Esmeralda faz um vê invertido com as sobrancelhas, esboça o gesto de fazer qualquer coisa.

Como se guardasse um delicado segredo, encosto atrás de mim a porta metálica. Suspendo a respiração por um segundo, até ouvir o estalido.

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