Lia – Capítulo 7

Ela chegou a sentir o gosto de um tanto de sangue.

*

Suas pernas, ainda sem que ela se desse conta, já tinham começado a ceder. Elas como que queriam ceder. Líquidas, já iam se desfazendo. Mas a mão esquerda de Lia seguia fechada. Fechada cravada. Se tivesse naquele momento a capacidade de prestar atenção no que lhe pareceriam detalhes desimportantes, ela na verdade perceberia que ao menos uma de suas unhas estava prestes a lhe romper a pele da palma. Mão detida na altura da coxa. Vibrando muito, muito levemente.

A outra mão tinha se afastado, no gesto de se erguer em resposta. Em reação. Um mero instante antes. Instantes depois do fato. Mas quase tão rápido quanto subiu ela parou. Se deteve antes mesmo de começar o gesto, antes até de ir a vias de fato.

Ventre tenso, ombros contraídos algo encurvados, braços ativamente ancorados onde estavam, diafragma imobilizado travando os pulmões no meio do gesto de trazer mais ar… o corpo todo de Lia, da cintura para cima era moldura para o vazio que de repente pareceu lhe surgir bem no meio da barriga. Um oco, um fundo: um vazio.

Reviravolta estranha, mole, frágil, indesejada e repulsiva, que no entanto ameaçava a qualquer momento lhe subir à cabeça. Era como se o corpo todo duro de Lia estivesse derretendo de baixo para cima. Virando água. Mas não podia ser água. A tensão que trazia ainda entre quadris e pescoço só podia ser desfeita por coisa mais ácida. Coisa pior.

Os nervos que lhe saltavam no pescoço, se você estivesse olhando, pareceriam de fato cabos. Cabos que estavam no último grau de sua capacidade de manter a cabeça presa aos ombros. Cabos que lhe dessem a volta por sobre o crânio, garantindo algum travamento estrutural a um conjunto que, não fosse por isso, estaria prestes a estourar. O queixo… a mandíbula de Lia era a contrapartida da pressão sobre a calota craniana. Eram esses dois ossos que estavam sendo estabilizados por aqueles cabos. A cabeça espremida. Para não explodir. Dentro da boca, sua língua tinha se recolhido, se feito em mola presa, e de fato estava presa entre os dentes, dos dois lados. Levemente mastigada. Era dali o tanto de sangue.

Seu rosto parecia também comprimido (aqueles cabos de tensionamento…), parecia querer convergir para a ponta do nariz que, como a mão esquerda, também vibrava levemente. No imenso olho esquerdo, brilhante, surgiu morna uma lágrima gorda, como que espessa. Viscosa. Profundamente indesejada. Traidora.

Ela tentou mexer muito contidamente a musculatura que lhe cobria os zigomas, como que para dar base mais ampla àquela água. Como que para empoçar o que a inundava. É curioso que, no meio do monte de sensações que lhe tomaram o cérebro nos últimos tavez três segundos, a primeira coisa de que ela teve clara consciência tenha sido esse desejo: por favor não caia.

*

Diante dela a outra. A mãe. Sentindo ainda um formigamento na mão direita que não tinha retornado do arco do gesto. Olhando surpresa (surpresa?) a marca vermelha no rosto da filha. Tendo notado surpresa (surpresa!) o esboço do gesto da mão direita de Lia, em reação. Meio passo atrás. A mãe. Mais baixa que Lia há mais de um ano. Mais seca. As duas na porta da cozinha. Uma encostada em cada batente. Ou quase.

Do lado de fora da casa, um bando de tirivas fazia um escândalo absurdo. Enfurecido. Fim de tarde. Cáustica, a lágrima lenta desce quente, escorre densa.

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