Dente-de-leão

No parquinho do Passeio Público minha caçula colhe um dente-de-leão. Quer assoprá-lo, mas a irmã mais velha a detém: Espere, é preciso, antes, fazer um pedido. O que você deseja? A pequena pensa, pensa e, então, se ilumina. Avisa que já sabe o que pedir. Devagar, em voz alta, enuncia: Desejo assoprar um dente-de-leão. Assopra. Seu desejo prontamente se realiza. E assim aprendo que, às vezes, é necessário ser prático até mesmo na hora de desejar.

É sábado, início da tarde. Os feirantes desmontam suas barracas. Há um leve trânsito de carros e caminhões no interior do Passeio, o que atrapalha a circulação das prostitutas. Pacientes, elas se concentram ao redor do viveiro das aves de rapina, à espera do fim da feira. Duas delas acenam para a minha caçula, que se esconde entre as pernas do pai. Rimos, e as mulheres me tranquilizam: Calma, moço, que um dia ela perde a vergonha.

Cantando, uma mulher se aproxima do grupo. Veste uma minissaia em péssimo estado e a parte de cima de um biquíni. Arrasta os chinelos no pó, dançando vanerão com um cliente invisível. Não conheço a melodia que executa, e nem ela a conhece. Improvisa, inventa. Canta bem e sabe disso, e até sorri ao cantar, e rodopia para divertir as outras, que a saúdam uma a uma, embora com entusiasmo moderado, pois também não é para tanto.

De repente, a agressão imprevista. A cantora para diante de uma colega mais miúda e, ainda sorrindo, desfere nela um primeiro golpe. Não há chance de reação. A vítima ainda tenta contrair o corpo aqui e ali, para defender-se dos socos e dos chutes que vai levando, mas suporta tudo calada, não revida. Prefere não chamar a atenção, apanhar discretamente. As outras mulheres nem se coçam, sequer cogitam ajudá-la. Os gaviões no viveiro não se afetam. Atento, o urubu-rei acompanha o caso, mas sem tomar partido. Ambas as lutadoras lhe parecem igualmente comestíveis.

Me afasto depressa, levando as meninas. A mais velha compreendeu a disputa, mas a caçula está intrigada. Por que brigaram, pai? Avalio a dificuldade de responder àquilo objetivamente. E por isso respondo com outra pergunta, fingindo naturalidade: As crianças também não brigam lá na escolinha? A menina pensa a respeito, diz que sim, que de vez em quando brigam. E esquece o assunto.

Mais adiante encontramos dois caras. Bêbados. Caminham à nossa frente, de braços dados. São amigos. O aspecto de um deles é miserável, em todos os sentidos. O outro está razoavelmente bem arrumado. Roupas limpas, topete recém-penteado com água. Num dos bolsos de trás da calça jeans, o esquerdo, carrega uma escova de dentes amarela, além de um tubinho de pasta dental. No bolso direito leva uma garrafinha de plástico azul, talvez de leite de magnésia, e um pente.

Passam por um casal que namora na grama, debaixo de um plátano. Ele é um homem enorme, de músculos firmes, apesar da banha que os encapa. Ela é uma senhora pequena, bem mais velha que ele. Atracam-se aos beijos, manifestando algum nervosismo. Um violão preto largado no chão, ao lado dos dois, reforça, naquele relacionamento, o seu viés de sentimentalidade.

Ao vê-los, o bêbado miserável não resiste. Interrompe a bolinação que os abduzia do mundo. Ambos, homem e mulher, reagem com espanto e inconformidade. Protestam. O bêbado, todavia, pede a eles somente o obséquio de uma moedinha, já que aos apaixonados, ensina, o dinheiro jamais fará falta.

Segue-se uma discussão bizantina. Disposto a sair no braço, o homem musculoso se ergue da grama, batendo da bunda o capim e as folhas de plátano. Mas o bêbado alinhado intercede em favor da paz. Diz que, se o problema é grana, está tudo resolvido. Vasculha os bolsos e deles resgata um punhado de moedinhas. Como se estivesse à beira de um poço dos desejos, atira os tostões sobre o casal, agora petrificado em sua perplexidade. Depois agarra o amigo pela camiseta e o reboca, correndo, até a saída da Carlos Cavalcanti.

Os namorados se recompõem. A mulher pacifica o homem, e logo retomam sua posição e seus beijos. Continuam apaixonados. A diferença é que agora se amam e amassam em meio a várias moedas de cinco e dez centavos.

Minha caçula analisa a cena. Vê as moedas desperdiçadas e, entre elas, mais um dente-de-leão que se empluma. Pensa, pensa e, então, pergunta: Posso fazer outro pedido?

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