O gato

O gato surgiu das folhagens, negro como a peste, e avançou sobre o muro estreito, resoluto e seguro, mas também elegante, como uma mulher em saltos altos. Eu estava estirado sobre uma cadeira de praia velha na calçada, tentando aproveitar o Sol e me concentrar num livro de poesia – e falhando desgraçadamente; sou um leitor de poesia às raias do miserável.

Em outro sábado qualquer, eu provavelmente estaria desperdiçando meu tempo e esfolando meus cotovelos sobre o balcão de um botequim, o Luzitano, vendo futebol e folheando o jornal, trocando impressões com velhotes, avacalhando e sendo avacalhado pelo balconista. Mas o absurdo conjunto das últimas circunstâncias me obrigou a uma abstinência entediante, e lá estava eu, um tanto a contragosto, tresnoitado e obtuso, metido numa bermuda jeans desbotada, circunscrito às mesmas coordenadas geográficas que o gato.

De modo que fui eu que cruzei o caminho do gato, e não o contrário.

Seja como for, o gato surgiu e me deu uma desculpa para abandonar de vez a leitura emperrada. No meio do muro ele parou e sentou sobre as patas traseiras, naquela pose dos gatos que equivale a de um homem ereto e confiante. O pelo negro reluzia ao Sol, e por um momento ele pareceu um grande bibelô de louça. (Uma lembrança da infância: minha avó costumava ter um pequeno gato de porcelana sobre a televisão empoeirada.)

O gato sobre o muro então me encarou com seus olhos de gato, daquela cor esquisita entre o amarelo e o verde, espécie de burro-quando-foge cintilante. E continuou olhando, como se considerasse as alternativas para contornar um problema insolúvel, um caso irremediável – eu, aquele curioso traste sob o Sol. Um gato é um estandarte do escárnio.

Por isso são admiráveis, os gatos, por sua autossuficiência e desprezo pelo resto. Admiráveis como é admirável um homem que se basta, indiferente à solidão. Ao contrário dos cachorros, que de admiráveis não têm nada, são apenas seres aporrinhativos. Inconvenientes, de uma submissão voluntária e desbragada, nem sequer floreada, quase orgulhosa. Como via de regra somos nós. Talvez aí resida a afinidade primeira.

O gato, porém, paira um degrau acima do restante da Criação, sobre o muro, escrutinando seus domínios. Pouco importa que a escritura seja minha. Ele não está nem aí. É uma questão maior. Ele é o vencedor moral porque autossuficiente, tem o direito inalienável de reinar sobre o que – conto aos outros – é meu.

Sobre o muro, o gato, enfim, cansou de mim, mais uma estúpida criatura sobre o globo, e, com o que me pareceu um bocejo, saltou e apressou-se a cruzar o pátio até desaparecer de vista. Tinha a empáfia e o desdém de quem apenas checa a situação, se assegura da calmaria e vai embora – o resto não lhe diz respeito. Para que chatear-se em demasia?

E eu fique lá, ao Sol, pensando na autossuficiência dos gatos: uma meta realmente valorosa a se perseguir na vida.

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