Lia – Capítulo 19

A porta era branca.

Era de fato a única coisa branca na cena. Enquadrada como estaria se vista de um ponto médio do corredor que justo na porta acabava. Ou, na verdade, corredor que em outro, transversal a ele, acabava; corredor este (o transversal) que numa de suas paredes tinha a nossa porta. É sempre estranho descrever o espaço no tempo da língua. Mas tente visualizar.

O que você teria diante dos olhos: certa extensão do corredor à sua frente, paredes nuas, piso frio, luz gelada do teto. Embutida. Dois ângulos retos, esquinos, no ponto em que o “seu” corredor se encerrava e como que afluía para um outro, que passava da esquerda para a direita. Ou da direita para a esquerda, claro. Sendo o corredor que sobe e o que desce sempre um e o mesmo.

Na parede esquerda desse corredor transversal, para alguém que o percorresse no que você veria como um rumo da esquerda para a direita, está aquela porta. Mencionada há pouco. Vai sem dizer que essa parede esquerda é também a parede direita para uma pessoa que percorresse o mesmíssimo corredor no seu sentido oposto. Mas foi dito.

Em resumo. Exatamente à sua frente está a porta. A porta branca que é a única coisa branca nesse quadro, já que as paredes são de um rosa adoentado, o teto é branco mortiço e o piso é do verde de um abacate dissolvido em três vezes e meia seu volume de água. Nem mesmo os rodapés e o caixilho que cerca a porta em questão são brancos, mas de um amarelo como o do plástico que um dia foi branco e já não é.

A maçaneta da porta, localizada à esquerda de quem olha do seu ponto-de-vista, é de metal prateado. Nítida, mas ah tão nitidamente barato. Fraco. A maçaneta nem tem a decência de permanecer numa altiva horizontal paralela ao chão. Ela pende poucamente à direita. E mesmo vista de longe é difícil não supor que seu eixo caiba com folga no furo em que foi instalada. Que ela oscila, que joga.

Nada acontece no quadro.

A porta está fechada, embora se possa perceber que seu alinhamento não é perfeito, e que um pouco dos ares internos escapa pelo encaixe entre folha e alisar. O silêncio é total. Ou não. Porque o silêncio nunca é total. Ouve-se o vago zumbido da iluminação, talvez defeituosa. E, com um pouco mais de esforço, ouvem-se vozes que vêm do outro lado da porta branca. Indistintas, confusas, mas claramente agressivas. Há uma discussão inacessível do outro lado da porta branca.

Uma das vozes, feminina, parece por vezes ficar ainda mais perceptível que as outras. Como se tivesse chegado mais perto da porta e da fresta, essa voz. Em duas ocasiões ela parece ter vindo até a própria porta. Na primeira, a maçaneta chegou a estremecer. Na outra, uma palavra quase se fez ouvir.

Louca?

Depois disso as vozes retomaram seus volumes equalizados. Reunidas mais no centro do cômodo aparentemente grande que ficava por trás da porta branca. Até que, sem avisos, sem tremores e sem ondas de fala mais alta, a porta se abriu de supetão, para dentro, e antes mesmo que completasse seu pivô o corpo de Lia explodiu pela abertura, como que se espremendo por ela ao mesmo tempo em que ela se constituía em fenda, em fresta, em falha geológica. Lia parecia estar sendo fagocitada pelo corredor, tamanha a violência de sua saída pela porta.

Mas, passo afora, ainda com a mão na maçaneta, ela se deteve exatamente no momento em que tinha já começado a exercer sobre a porta uma força que a teria trazido com um estrondo de novo para o encaixe. Lia quaaase bateu aquela porta. Seu rosto mostrava claramente que era o que mais queria naquele momento.

Mas ela se conteve.

Parou. Intensificou, ao invés de relaxar, a careta de raiva que ostentava. Puxou o ar uma única vez e encostou a porta com pausadíssima delicadeza.

(Enquanto isso, o silêncio lá dentro era total).

Ela piscou com grande lentidão.

Soltou o ar.

Veio na sua direção.

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