O calau abissínio

Eu fazia companhia ao calau abissínio do Passeio Público, no sábado, quando o vi passar. Era um homem de seus trinta anos, forte, mas cambaleante. Talvez ludibriado pelo sol de outono, vestia bermudas e chinelos de dedo. Transportava nas costas uma mochila de náilon, estufada. Nas mãos, uma garrafinha de vodca, da qual bebia no gargalo. Não era uma figura lógica nem agradável, mas era real, e do real, vocês sabem, não se desvia facilmente.

Ao caminhar, o homem gritava leves obscenidades escatológicas, apesar de, com elas, não pretender descompor ninguém em particular. Nada disso. Entoava seus palavrões mais como se cantasse uma ode, positivamente emocionado, integrado à natureza e à cidade. Ao se aproximar do viveiro do calau, porém, algo o emudeceu. Parecia perplexo, ou mesmo assustado. Devagar, foi se acocorando. Depositou a garrafinha no chão, com prudência e carinho, e por fim vomitou no asfalto. Fartamente.

O calau abissínio, juro, desviou o olhar. Vivia uma rara tarde de paz e serenidade. Gosto dele, mas somente quando está assim, calmo, empoleirado. Em geral, desperdiça seus dias a correr de um extremo a outro de sua gaiola, não sei se com intenções de exercitar-se ou se meramente desesperado. Tranquilo, no entanto, é como se encarnasse outro animal. O corvo de Poe, quem sabe. Embora o corvo de Poe, ao contrário do calau abissínio de Curitiba, não seja real.

Mas eu dizia e jurava que o calau, ao ver o homem vomitando, desviou o olhar. E ao fazê-lo me olhou de viés, piscando para mim aquelas vastas pálpebras negras que tanto me atraem. Esqueci de dizer, aliás, que o calau abissínio do Passeio Público é uma fêmea (arrisco afirmá-lo graças à coloração azul de sua papada), asserção que na verdade reputo grosseira e até desimportante, pois mesmo que fosse um macho, estou certo de que seu olhar me enterneceria. Sim, há algo de humano e delicado naqueles cílios longos e curvos, algo que me enternece. São cílios que me lembram alguém de quem um dia gostei. E é por isso que passo, sempre que possível, bons minutos ao seu lado.

Pois o calau desviou os olhos do homem que vomitava provavelmente por estar exausto de cenas como aquela. Quanto a mim, devotado representante da humanidade, me vi na obrigação de desculpar-me com ele. Que o calau nos perdoasse, ora, quem é que não anda nauseado nos últimos meses? Compassivo, o pássaro pareceu compreender. E, sim, perdoar. Viu o homem dirigir-se ao banheiro público diante de sua gaiola, agora um pouco menos alegre do que antes, o que era justificável. A garrafinha, todavia, foi com ele.

Ficamos em suspenso. Os pombos, que são livres, é que agiram depressa. Um bando deles prontamente cercou a poça de vômito abandonada, na esperança de encontrar ali alguma recompensa, forçando o calau abissínio a assumir seus encargos de ave nobre. Ele, ainda bem, não fugiu de sua incumbência. Fazendo cara de consternação, sondou-me com aqueles seus olhões tristes, quase irreais, não como se me pedisse desculpas pela atitude dos pombos, e sim piedade de seus companheiros de classe. Apiedei-me.

Uma família humana passou por nós. Um casal esmorecido e três crianças pequenas, só isso, carregando balões de gás metalizados. Eram dois meninos e uma menina. Os balões dos meninos representavam o Homem de Ferro e eram os únicos que levitavam. Por razões que desconheço, o balão da menina, representando a Galinha Pintadinha, não levantava voo, e ela o arrastava pelo pó, chorando alto. O casal, por sua vez, arrastava a filha. Soltos, os meninos correram espantar os pombos, mas, desavisados, patinaram feio na poça de vômito, passando a chorar também. Seus pais não disseram nada. Apenas seguraram o choro.

Enquanto isso, o calau e eu esperávamos o homem sair do banheiro. Ele se demorava, no que estava em seu direito. Uma mulher se aproximou de mim e perguntou se eu não gostaria de acompanhá-la ao terrário. Ela queria visitar a nova jiboia, mas alegava ter pavor de cobras. Lisonjeado, agradeci mas recusei o convite, sentindo o olhar do calau na minha nuca. Quando a mulher se foi, encarei-o, e o pássaro de novo desviou os olhos. Também sentia piedade de nós.

Passamos mais cinco minutos naquela disposição calada e ansiosa, até o homem finalmente reaparecer. Levamos um susto, pois este saíra do banheiro mudado, parecendo outro, uma fênix. Vestia terno e gravata pretos e sapatos da mesma cor. Camisa branca. Os cabelos arranjados para trás, com gel, a pente fino. Nem suas roupas eram caras, desnecessário dizê-lo, nem seu visual era o de um executivo bem-sucedido, mas podia muito bem ajustar-se ao de um advogado ou representante comercial. Presumi, contudo, que trabalhasse como segurança nas proximidades, talvez no shopping. E era chegada a hora do seu batente. A garrafinha, por exemplo, tinha sumido, largada no banheiro ou guardada na mochila.

Ao ver tamanha transformação, o calau abissínio me olhou interrogativamente. Estava surpreso, e até divertido. Sorri para ele, balançando a cabeça, concordando com algo que imaginei que o pássaro quisesse me dizer. Acompanhamos com o olhar aquele homem refeito que se afastava, rumo às suas justas atribuições. Tinha um emprego, era um sujeito de sorte, afinal. Decerto por isso caminhava com tanta determinação e orgulho.

Até que alguma coisa, de novo, o fez parar, agora diante do viveiro das seriemas. Ali se acocorou, lentamente, e mais uma vez vomitou, pobre brasileiro, para a indignação das aves pernaltas, que apenas soergueram as cristas, em impotente protesto.

Foi quando o calau abissínio caiu na real. Pulou de seu galho e recomeçou a correr de um extremo a outro de sua gaiola.

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