A verdade está nos balcões

De algum lugar onde a vista não alcançava, vinha uma música ligeira, meio elétrica, mas muito baixa. Eu batucava no balcão, tentando encontrar o compasso – e falhava desgraçadamente; tenho a coordenação motora de um bêbado com Mal de Parkinson.

O sujeito de meia-idade e meio baixote de terno e gravata ao meu lado – um tipo respeitável de sujeito – pegou no meu ombro com a familiaridade de um velho camarada de armas. Disse:

– E você, menino, acha que esse governo aí dura até quando?

Aquilo foi uma surpresa. Durante anos, o sujeito respeitável e eu não havíamos trocado mais do que meia dúzia de palavras e alguns acenos de cabeça à guisa de cumprimento, mesmo nos encontrando com alguma frequência naquele balcão. Era uma pegadinha? Num balcão de Curitiba, nunca se sabe. Eu também não sabia se queria entrar na discussão. Estava concentrado na música – o que era aquilo? Jazz fusion? O dia havia sido pesado e eu chegara ali para organizar a cabeça.

– Não faço ideia – respondi. – Parei de apostar na política nacional nas eleições passadas. Errei todas.

Um outro sujeito simpático e de terno e gravata – por que de repente estava todo mundo usando terno e gravata? – atalhou:

– Eu acho que não dura muito não – disse, sorridente. – Deixa eu contar uma coisa pra vocês.

Não era como se eu tivesse muitas opções, então apenas fiquei lá, ouvindo.

O segundo sujeito simpático de terno e gravata estava dizendo que estivera nas últimas manifestações que emparedaram o governo Bolsonaro, no dia 15, reivindicando a suspensão do corte de verbas para as universidades públicas federais. Não era uma coisa que ele costumasse fazer, disse, mas naquele dia andou um longo trajeto em passeata com estudantes e professores.

– E deixa eu contar uma coisa pra vocês: tinha até gente de bem lá. Tinha um pessoal do PT também, mas tinha gente de bem.

Novamente, fui pego no contrapé. Muito bem, muito bem, alguma coisa acabara de acontecer ali. Não é um balcão conhecido exatamente por ser um covil de comunistas (e nem por tocar jazz fusion; de onde, afinal, vinha aquela música?).

O balconista ligou a TV no jornal e subiu o volume. A âncora fazia a escalada e lia as manchetes do dia:

– Estados Unidos voltam a apoiar a entrada do Brasil na OCDE, o clube dos países ricos – anunciou.

Uma risada desvairada e quase caricatural estourou às minhas costas. O homenzinho sentado em uma mesa ao canto não vestia terno e gravata. Olhou pra mim arqueando as sobrancelhas e zombou:

– Agora vai, hein?

Não creio que existam lugares melhores para se medir a febre política de um determinado tempo do que dentro de um táxi ou em um balcão. Muita coisa pode ser entendida logo pela manhã, num balcão de padaria, enquanto homens conversam comendo um pão na chapa com pingado, os rostos ainda vincados pelo sono e pelo desânimo do que está por vir, os zíperes dos casacos erguidos até o pescoço para encarar a primeira onda de frio do ano.

Muitas coisas podem ser entendidas num balcão de bar ao anoitecer, quando homens descem em seus pontos de ônibus, uma sacola de pão nas mãos, e param a caminho de casa para uma última bebida rápida. (E por algum motivo, enquanto escrevo isso penso em cenas de O Inverno da Nossa Desesperança, um dos três grandes romances de John Steinbeck.)

A verdade está nos balcões, nos táxis, nas filas dos buffets por quilo, dentro dos ônibus. Está na boca da senhorinha que, me contava esses dias, há não muito tempo vendia 80 pratos-feitos por almoço em seu restaurante simples, meia dúzia de mesas espalhadas em um salãozinho; agora, vende 15.

– O pessoal da construção civil comia muito aqui. Agora, não tem mais construção civil, né?

Eu sei que o presidente da república prefere o Twitter, onde um exército de robôs faz a terraplanagem do terreno e lhe deixa confortável, mas a verdade não está lá, nem na boca de famosos arrependidos que tentam capitalizar agora o próprio recuo. A verdade está nos balcões, onde o guardador de carros conta as moedas para tomar uma última cachaça com limão, balança a cabeça diante da TV e decide que cometeu um erro.

E eu ainda penso naquela música.

***

Por falar em música, na semana passada, Chico Buarque de Hollanda venceu o Camões, o maior prêmio de literatura da língua portuguesa. Li apenas um livro do que ele produziu como romancista, Estorvo, e gostei – acho que me identifiquei com o personagem. Mas o júri que lhe concedeu o galardão deve ter mesmo mirado em sua obra como compositor, tal qual a Academia Sueca quando deu o Nobel de Literatura a Bob Dylan (que, a propósito, fez 78 anos na última sexta).

Não vou entrar em nenhuma discussão acadêmica a respeito, porque nem sequer tenho condições pra isso. Na minha cabeça, de acordo com meus próprios critérios e convenções, não há dúvida de que o que faz Chico Buarque, ou Belchior, ou Bob Dylan, é também literatura. Como no fundo também é literatura o cinema e o teatro.

E por que estou eu aqui falando de Chico Buarque e prêmios literários? Bem, pensei que devia render alguma homenagem ao camarada que primeiro me ensinou que a música (e a vida) eram mais do que Ramones, punk rock, hardcore e paulada na moleira. (E, no fundo, haverá algo mais punk do que “Hino de Duran”?)

O cara mereceria um prêmio só por abrir a minha cabeça dura.

 

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