O que as “decaídas” me dizem

Fazia um bom tempo que eu estava ali, com o nariz enfiado em jornais de exatas seis décadas atrás, pesquisando com disciplina monástica. Uma palavra no título de uma matéria de topo de página, contudo, me atraiu, por soar que se equilibrava entre a metáfora e a ironia: “decaída”. O vocábulo aparecia como substantivo, não como adjetivo. Achei curioso e fui ler. Ao longo daquelas poucas linhas esparramadas em duas colunas, o Correio da Noite noticiava a morte de Hilda, que a polícia não sabia se havia se suicidado ou se tinha sido assassinada. Só então e pelo contexto é que fui inferir (santa ingenuidade!) que “decaída” era a forma de tratamento que a imprensa destinava às prostitutas.

Ao caso: a hipótese inicial era de que Hilda tivesse se matado, bebendo formicida. O comportamento do amante dela, no entanto, deixou os investigadores “com fortes suspeitas”. É que, conforme assinalou o jornal, o rapaz contratou um advogado, antes mesmo de comunicar à polícia a morte da “pensionista do prostíbulo denominado ‘Casa da Otília’”. Ademais, dizia a matéria, Hilda não teria motivos para “atentar contra a própria vida”: morava em uma “luxuosa residência, cujos utensílios, móveis e tapetes foram avaliados, à primeira vista e grosseiramente, num valor superior a 600 mil cruzeiros”. A “decaída” mantinha, ainda, “pedras preciosas e peças de ouro” estimadas em mais de 200 mil cruzeiros. Devia ser uma puta grana! (Sem trocadilhos, juro).

O suspeito chegou a ser preso, mas ganhou liberdade dias depois, por força de um habeas corpus. O jornal narrava que, em depoimento ao delegado Zaratustra, o “amásio” descreveu as últimas agonias de Hilda “com gestos característicos de morte causada por soda cáustica” – não de formicida. Supunha-se, assim, que o amante pudesse ter envenenado a “decaída”. Como assim? Com que motivo? Em que circunstâncias? Pronto! A história havia me fisgado de forma muito mais arrebatadora que qualquer uma dessas séries, pelas quais vocês se enfurnam sob as cobertas, fins de semanas a fio. Outra vantagem: nos jornais antigos, não há spoilers.

Ajeitei-me cadeira, avançando pelas edições de junho de 1959. Ao longo da procura pelo desfecho do caso, outras histórias foram surgindo feito pop-ups analógicos, disputando minha atenção. Uma delas: a notícia de um assassinato ocorrido na “casa de tolerância de nome Casa Pernilongo”. Segundo a matéria, o sanfoneiro do “estabelecimento” havia metido dois balaços em um cliente, que “tratou com Ivete para com ela passar a noite”. É que o músico tinha expectativa de ter para si “as boas graças” da moça, mas o frequentador da casa lhe passou a perna. Alguém tem dúvidas de quem o jornal espinafrou? A mulher, é claro: “Leviandade de uma decaída gera crime”, bradava o título.

Outra nota abordava o processo ajuizado por um marido, que queria anular judicialmente o casamento porque havia descoberto que a esposa havia sido “frequentadora de casas de tolerância”. Sim, como a própria matéria explica, sob a alegação de ofensa à honra (do cavalheiro, é claro), a Justiça podia, então, dissolver um matrimônio, se a mulher tivesse se casado sem ser virgem: “o homem que desposa uma decaída que, sob a capa da honestidade lhe conquistou a estima, pode invocar este fato”, esmiuçava o acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná. No caso em tela, no entanto, o casório não foi desfeito, porque, mesmo antes de trocar alianças, o noivo “já sabia que sua eleita não era donzela”. Fiquei ponderando como, depois disso tudo, o casal pôde viver sob o mesmo teto. O que terá acontecido à mulher?

Como nem só de casos ocorridos nos limites da Terra das Araucárias vivia a crônica policial do Paraná, em uma das edições seguintes, o Correio da Noite importava uma matéria do Rio. A reportagem narrava o desvario de um pai, que assassinou a própria filha com três tiros, por suspeitar que ela havia sido “seduzida” pelo namorado. O velho só não atirou contra a esposa, porque um investigador conseguiu desarmá-lo a tempo. Ainda assim, o senhor “levou à boca o vidro que levava e bebeu o poderoso corrosivo, que o fez cair como fulminado”. O título, escrito em letras garrafais: “Ao julgar a filha desonrada, matou-a e suicidou-se na rua”.

Ah, sim! Perdoem-me a digressão. Eu já ia me esquecendo. Voltemos ao caso de Hilda, a “decaída” que me desviou a essa incursão pelo jornalismo policialesco. Em uma edição de junho de 1959, encontrei o desfecho do caso, mas confesso que fiquei frustrado. Não pela conclusão, em si, mas pela forma como a polícia deu a investigação por encerrada: baseando-se no depoimento de “um médico que já fora amásio de Hilda e que, por três vezes, impediu que ela consumasse sua intenção de praticar suicídio”. Bastou a palavra de um ex e pronto. “Foram-se diluindo as suspeitas, até que ontem à tarde o delegado Zaratustra declarou: ‘já não há mais dúvida, foi suicídio mesmo’”, finaliza a matéria.

Foi inevitável. Os volteios pelas páginas do passado me puseram em um estado de reflexão que só ressaltava a necessidade do feminismo. Se bem que nem seria preciso olhar tão para atrás. Os casos estão aí. Bastaria ler os jornais de hoje, manchados com sangue de feminicídios e afins. Convém lembrar: estamos em um país em que, a cada duas horas, uma mulher se torna vítima de morte violenta (conforme dados da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Pelo eco das notícias amareladas, as decaídas me gritam que, em sessenta anos, algumas coisas mudaram. Outras, nem tanto…

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