Como ser grosseiro e influenciar pessoas

Sobre o palco de um inferninho nova-iorquino esfumaçado, um Dustin Hoffman barbudo e com o olhar malicioso encara a pequena plateia e dispara: “Vocês sabiam que Eleanor Roosevelt passou gonorreia para Lou Gehrig?”. Eleanor Roosevelt havia sido primeira-dama dos Estados Unidos e queridinha dos liberais do país; Lou Gehrig, um famoso jogador de beisebol. Misturar, numa mesma frase, os dois e uma doença venérea era um ataque frontal às instituições americanas. “Estamos em 1964 e todos os médicos me dizem que uma doença está virando epidemia, quando uma simples injeção na bunda resolveria o problema”, continua Hoffman, articulando rápido e atabalhoadamente. “Acho que o que precisamos é começar a falar sobre isso.”

A cena abre Lenny (1974), a cinebiografia do anárquico, desbocado e “nojento” comediante de stand-up americano Lenny Bruce. Lembrei do filme quando li a notícia de que o Poder Judiciário brasileiro havia considerado razoável colocar na prisão um sujeito que enfiara um papel dentro das calças.

Dustin Hoffman faz o papel do comediante de stand-up americano Lenny Bruce.

Durante sua relativamente curta carreira, Lenny Bruce foi preso pelo menos uma dezena de vezes, a maioria delas por “obscenidade” e “atentado ao pudor” – e também duas ou três vezes por posse de drogas. Ele nasceu Leonard Alfred Schneider, mas mudou de nome por considerar o verdadeiro “judeu demais”. Teve uma ascensão meteórica, ao insultar e ofender não importa quem para denunciar a hipocrisia da sociedade norte-americana, e um queda tão rápida quanto, quando o moralismo reinante viu nele um inimigo que precisava ser abatido.

Foi para o xadrez pela primeira vez quando usou a palavra “cocksucker” (“boqueteiro”) em uma apresentação. Havia feito coisa pior antes, para os padrões da época: “O pior que você pode dizer a outra pessoa é: ‘vá se foder’. É estranho, porque foder é uma coisa boa. Eu devia ligar agora mesmo pra minha mãe e dizer: ‘ah, minha querida mãe, vá se foder’”.

Não via tabu em nada: religião, patriotismo, racismo, homossexualidade, a Ku Klux Klan. “O que é sujo? E o que é limpo?”, perguntava. “Eu prefiro que o meu filho veja um filme pornográfico do que um filme convencional, como O Rei dos Reis. Porque O Rei dos Reis está cheio de mortes, e eu não quero que meu filho seja influenciado a matar Jesus Cristo quando ele voltar”, zombava. Ou ainda: “Não há um único filme pornô em que alguém apanhe ou seja morto. Com sorte vemos alguém sendo amarrado ou levando leves pancadas com um cinto”.

Nem sempre, todavia, ele parecia ser um progressista à frente de seu tempo, um “homem de esquerda”, como ele mesmo se definia. Em certa ocasião, xingou um negro da plateia de “crioulo” (em inglês, o até hoje extremamente ofensivo “nigger”). “Por que é que eu não posso te chamar de crioulo?”, quis saber. “Eu quero usar esta palavra: crioulo, crioulo, crioulo, crioulo. Eu quero usar essa palavra, gastar ela até que não signifique mais nada. E então nunca mais veremos chorar um rapaz que foi chamado de crioulo na escola. Não é a supressão da palavra que te dá o poder.”

Em suas rixas com a polícia, o governo e a Justiça, Lenny foi defendido por nomes como Bob Dylan (que compôs inclusive uma canção o chamando de “o maior fora da lei”) e James Baldwin, o escritor e ativista negro e homossexual, além de Norman Mailer.

Não adiantou muito. A máquina de moer gente trabalhava em alta rotação. Policiais assistiam a seus espetáculos da plateia, à espera de qualquer deslize para leva-lo em cana. Acumulava processos. Impedido de trabalhar, foi rapidamente à falência.

É difícil dizer exatamente o que leva uma pessoa à autodestruição (Lenny havia tido uma juventude conturbada e mantinha um casamento tumultuado com uma stripper viciada em drogas, como ele), mas não me parece nenhum disparate afirmar que a perseguição do sistema judicial americano teve papel importante em sua morte. Foi encontrado nu no chão do banheiro de seu apartamento em 1966, vítima de uma overdose de morfina. Em seu enterro, o jornalista Dick Schaap declarou: “Morto. Aos 40 anos. Isso é uma obscenidade”.

Em 2003, Lenny recebeu o perdão póstumo do Estado de Nova York por uma condenação a quatro meses de prisão. Atualmente, é considerado um dos três maiores comediantes de stand-up da história dos Estados Unidos. O filme Lenny foi proibido no Brasil à época do lançamento pela ditadura militar (nossos gorilas o consideram “sujo” demais), junto com peças como O Último Tango em ParisEstado de SítioZ e Laranja Mecânica. Como Ser Grosseiro e Influenciar Pessoas é o título de seu livro de memórias, lançado nos anos 1960.

Lenny Bruce usava sua verve para demolir o status quo, e talvez essa possa ser apontada como a principal diferença entre o que ele fazia e o humor infantil e tosco de Danilo Gentili (um bobo da corte execrável que provavelmente jamais deixará sua prisão mental de quinta série). Ainda assim, quem está em condições de determinar o que pode ou não ser dito, a direção correta da História ou o que é, exatamente, um “crime de ódio”? O Judiciário brasileiro, esse amontoado de maníacos-demagogos e narcisistas de alto risco preocupados única e exclusivamente em defender a si mesmos?

Parece uma má ideia.

 

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