Cinzas

Após a última marchinha, as luzes do salão se acendiam, indicando que deveria ser o fim do carnaval. Mas, como era terça-feira, havia uma tradição: os músicos do conjunto, com instrumentos de percussão e metais em mãos, saiam em fila indiana, seguidos pelos foliões remanescentes, que entoávamos: “Atrás da banda/ Atrás da banda/ Eu vou, eu vou, eu vou/ Toca, toca bandinha/ Que atrás da banda/ Eu vou na minha”. O cordão seguia, então, até a praça em frente ao clube, como se quisesse estender a festa até mais e mais além, varando a madrugada. Mas quando o sol nascia, não tinha jeito. Era fim de carnaval e ponto. Sem alternativa, minha irmã e eu pegávamos o caminho de casa e, ao longo do caminho, dávamos de frente com as velhas beatas, que rumavam à missa de cinzas – e que faltavam fazer o sinal da cruz quando topavam conosco, como se fôssemos assombração ou merecêssemos a excomunhão. Era Quarta-Feira de Cinzas.

Quarta-Feira de Cinzas sempre me soou como um dia estranho. É como se fosse um domingo, só que prolongado, potencializado, em que o tédio se mistura a uma paúra depressiva, sem que se precise, para isso, da trilha do Faustão. Quase o prenúncio de uma segunda-feira que, irremediavelmente, vai se estender por meses a fio. Não tem jeito. Invariavelmente, fico com um certo gosto amargo na boca – e nem estou falando de ressaca. Talvez, inconscientemente, nos pese o fato de sermos obrigados a esperar mais um ano para o “sanatório geral”. Talvez nos ressintamos dos amores fugazes que nos escaparam por entre os dedos ou, quem sabe, dos que não aconteceram – é aquela história: “a vida que poderia ter sido e não foi”. Talvez o melhor mesmo seja nos unirmos às velhas beatas e cairmos em penitência.

Se a Quarta-Feira de Cinzas calhar de cair num dia trevoso e chuvisquento, como a desta semana, então, nem se fala. Sei lá. Parece castigo, o universo nos dando na cara ou algo que o valha. Tudo bem que não sou mais tanto de folia, como fui em outros carnavais, sambo com os indicadores em riste, feito turista gringo e tudo, mas sei um repertório considerável de marchinhas e tenho lá meu ziriguidum. E daí? De nada me vale. “Pô, até ontem havia bloquinhos, escolas de samba, a banda do Xapoca e do Jack. E Agora?”. Agora, a vida real. Enfim, o troço todo só não se mostrou pior, porque – graças aos céus – não vi ninguém postar “Todo carnaval tem seu fim” nas redes sociais. Ufa!

Um parêntesis para registrar pelo menos um alento na cinzentisse: a Mangueira veio como desforra a esses tempos sombrios em que pessoas têm orgulho da própria ignorância. Com “Histórias pra ninar gente grande”, a Verde e Rosa cantou heróis que não estão nos livros de escola. Uma ode a “índios, negros e pobres” e, mais uma vez, a lembrança de Marielle Franco, cuja morte está prestes a completar um ano. (A propósito: quem matou Marielle?). O triunfo carioca se juntou ao da Mancha Verde, de São Paulo, que levou à avenida um desfile igualmente emblemático, em que discutiu a escravidão, direitos dos negros e das mulheres e intolerância religiosa. Carnaval é política, é contestação, embora haja quem queira fazer crer que a festa se restrinja a mijo (“O que é golden shower?”).

Já no fim da noite, quando a Quarta-Feira de Cinzas estava a alguns minutos de seu fim oficial, ouvi alguns acordes. Fui à janela e, maravilhado, constatei que começavam uma serenata, do lado de fora do prédio. De onde estava, pude ver dois rapazes no meio da rua – um ao violão, outro ao pandeiro – tocando para que outro, da calçada, começasse a cantar. “Meu coração, não sei porquê/ Bate feliz, quando te vê…”, atacava, como se se dirigisse a alguém do segundo andar. Debrucei-me para contemplar melhor, enquanto algumas luzes dos apartamentos vizinhos de acendiam. Enlevado, disse para mim mesmo: “Mesmo nessa treva toda, ainda há poesia”.

Mas era Quarta-Feira de Cinzas. Do quarto andar, alguém rugiu: “Vamos parar com essa merda aí!”. Outro carrancudo ainda acrescentou um “Eu vou chamar a polícia!”, antes que a rapaziada colocasse a viola no saco e batesse em retirada, interrompendo a cantoria. É, amigo… nem Pixinguinha é capaz de embevecer um curitibano em noite de cinzas. Tenho pra mim que esses resmungões não devem conhecer os versos e a melodia de Vinícius e Carlinhos Lyra: “E no entanto é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade”, que, por acaso, leva o título de “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”. E, como vocês sabem, Quarta-Feira de Cinzas é um dia estranho.

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